11 de outubro de 2010

Sr. Y. diz:


Ninguém poderia imaginar, mas naquele imenso terreno, onde existiam árvores frondosas, clareiras, crianças ranhentas, pássaros – e onde há pássaros há trinados e piados e silvos -, formigas, lesmas, pequenos roedores, flores as quais não sei o nome, pedras, barro, minhocas, frutas caídas, folhas, uma pá, um rastelo, um poço, limo, um barracão, um balanço, hoje há um prédio de 31 andares, sendo 8 deles de um banco internacional, 12 de uma seguradora, 5 de uma loja de departamentos, 2 compondo uma praça de alimentação, 3 de um complexo hospitalar e 1 de um escritório que ninguém sabe para que serve.

No subsolo deste prédio trabalhava Alfredo, o homem do almoxarifado. Organizava os produtos de limpeza, os esfregões, os baldes, os panos de chão. Vestia um uniforme azul, como o dos outros trabalhadores da limpeza. Penteava o cabelo como todos os demais, mas com a divisão um pouco mais para a esquerda. Almoçava sempre ao meio dia e meia, abria a marmita e voilà: talvez macarrão, ou arroz com feijão; ovo, salsicha; às vezes frango.

No braço direito, na altura do ombro, uma tatuagem dos tempos de juventude, um barco à vela. Ganhou-a de um primo, um hippie muito talentoso que fazia a vida produzindo artesanato e tatuagens. Deve ter feito aquela aos 16 quando viajou para a praia, decidido a não mais retornar. Ou talvez aos 15, quando fazia parte de uma turma que errava pelo bairro em busca de confusão. Ou teria sido aos 18, quando entrou para o exército? Recorda-se bem das primeiras semanas naquele lugar, acordava cedo, dormia tarde, fazia flexões e limpava o quartel o dia inteiro. E aprendeu a dormir abraçado com as botas pra não fazerem cocô dentro delas. Depois não se lembra de praticamente mais nada. Apenas de Márcio, um soldado com quem passava as folgas jogando xadrez; aprendeu a jogar muito bem xadrez, pena que há muito não praticava. Mas lembra-se de ter aprendido a dar um xeque mate em oito jogadas, quase sempre funcionava, a não ser quando o adversário também conhecia o truque. Gostava de pensar o jogo como se fosse uma espécie de luta naval, os barcos atravessando aquele mar quadriculado aparentemente calmo, repleto de armadilhas letais.

Não se lembrava muito bem quando tinha visto aquela figura pela primeira vez. Tratava-se de uma mulher trajando um tailleur muito elegante, metida numas meias escuras e num par de saltos altos, o que lhe proporcionava um certo ar agressivo. Mantinha os cabelos presos, completamente puxados para trás e uns óculos que caiam perfeitamente no rosto, tanto que pareciam ter sido feitos sob encomenda. Ela carregava uma pasta fina, sutil, aparentemente muito leve, tão leve que poderia voar pelo espaço se solta de uma altura acima da cabeça. Ela lhe pediu um apontador, mas ele lhe avisou que no almoxarifado não havia material de escritório.

- Sim, sim, o senhor está certo. Mas preciso de um.

Por sorte ele ia sair para pagar uma conta atrasada, então disse que providenciaria o apontador. Mais tarde chegou com o objeto, uma caixinha de acrílico transparente, porém não sabia onde entregá-lo, porque ela não havia lhe dito onde trabalhava e nem ele havia lhe perguntado. Então deixou o apontador sobre a mesa. Era hora de receber o material que chegava, cândida e desinfetante. O carro trazendo a encomenda chegou, ele ajudou a descarregar, conferiu a mercadoria na nota fiscal, ofereceu um café ao motorista - que recusou -, assinou o recebimento. Depois organizou as garrafas nos armários. Sentou-se um pouco na mesa, apanhou a revista de palavras cruzadas. O apontador repousava sobre a mesa. Ele o apanhou. Dava para ver a luz passar pelo compartimento de acrílico, difusa. Olhou para sala através dele. Cansou-se. Voltou para as palavras cruzadas.

No dia seguinte, assim que chegou, apressou-se, porque sabia, logo viriam seus companheiros para pegarem material para limpeza, o que realmente ocorreu - o apontador foi uma das primeiras coisas que viu, quando arremeteu à sala. Depois de executar as tarefas da manhã, resolveu descobrir quem era aquela senhora. Um telefonema à portaria resolveria o mistério, pensou, porém enganara-se. Ninguém sabia dela. Ou melhor. Sabiam de pelo menos umas sete mulheres cujas descrições eram compatíveis com a que ele fornecia daquela figura. Mesmo que ele dissesse que ela era estranha, diferente, nada adiantava. As duas recepcionistas que ele consultara responderam de maneiras muito parecidas, levantando hipóteses que iam de uma gerente a uma acionista, passando por algumas secretárias e funcionárias das empresas instaladas no prédio.

Questionou algumas das pessoas que limpavam os andares. As respostas não iam além do que forneceram as recepcionistas. Mas elas o aconselharam a perguntar para Elis, uma velha senhora que trabalhara por muito tempo com Sr. Biene, o dono da empresa contratada para executar a manutenção diária do prédio, já falecido. Ela tinha um papel ambíguo, não era funcionária de nenhuma empresa que ocupava os andares e também não era mais exatamente uma funcionária da empresa que cuidava da manutenção do edifício, tinham deixado-a trabalhar no local por piedade e ninguém sabia ao certo quem lhe pagava o salário e quem lhe dava ordens. De qualquer forma, vivia para cima e para baixo, ajudando no que podia, repetindo sempre frases sussurradas de gratidão ao Sr. Biene.

- Nunca vi essa moça antes não. Por que o senhor não verifica no andar 31?

Ele não havia pensado nessa possibilidade, porém, agora aquela parecia a decisão mais óbvia. Rumou no mesmo instante ao elevador, o apontador em punho. No caminho tropeçou em duas pessoas; já dentro da caixa de metal balançava o corpo para frente e para trás, até que ele alcançasse o trigésimo andar, de onde teria de subir de escada até o topo do prédio, porque o elevador não levava até lá.

O corredor parecia mais longo do que nos outros andares e aquilo o perturbou, já que tal constatação soava ilógica. - Talvez porque pareça mais silencioso do que as outras partes do conjunto, eu sinta como se tudo fosse maior. - Forçou a primeira porta, encontrava-se trancada. Depois a segunda: o mesmo ocorreu. A terceira estava destrancada e todas as demais também, no entanto, nada havia nas respectivas salas. O coração palpitava apressado quando restavam mais duas portas ao final do corredor. Abriu a penúltima, ninguém. Contudo, havia algo de diferente em uma das salas: uma mesa, uma cadeira, um telefone e um armário antigo de escritório, daqueles de ferro, cujas gavetas podem ser trancadas à chave. Olhou ao redor, não havia viv’alma. Deu meia volta e correu para a última porta, mas as salas daquele espaço estavam completamente vazias. Lembrou-se das duas primeiras portas, teria de descer até o subsolo e buscar as chaves e o fez o mais depressa que pode, porém, ao alcançar o mural onde se mantinham as chaves, descobriu: nele não havia cópias das portas das salas do trigésimo primeiro andar. Quando saía, encontrou-se com Simplício a buscar um balde novo.

- Oras, pegue lá dentro, Simplício.

Alcançou o último andar: suava. Forçou as duas primeiras portas, pensou em arrombá-las, mas teve medo de romper o silêncio com algum estrondo que porventura resultasse da empreitada. O coração descompassava. Teve uma idéia: pensou em ir para alguma sala ao lado, sair pela janela, andar pelo beiral e alcançar as janelas respectivas às portas trancadas.

- Alfredo. Você está enlouquecendo. Por que precisa entrar nestas salas? Você nem se lembra onde colocou o apontador...

Derrotado, caminhava em direção às escadarias, quando resolveu olhar a sala onde havia a mesa, o telefone, a cadeira, o armário, pela última vez. Ao se aproximar do local, percebeu que a porta encontrava-se entreaberta. Aquilo o intrigou, porque tinha certeza de tê-la fechado. E estava certo: ao se aproximar, escutou vozes. Desta forma, agachou-se e, vagarosamente, espiou pela fresta. A mulher! Era ela! E havia também um homem completamente careca, usando um tapa olho. Ele estava sentado na cadeira, só era possível vê-lo do tronco para cima, do ângulo em que se encontrava Alfredo. Ele tinha o rosto embebido em volúpia, fitava a mulher com os olhos semicerrados. Quanto a ela, circulava pela sala, lentamente, movendo os quadris a cada passo, medindo o homem careca, fazendo as mãos passearem pelo próprio corpo; e eles diziam grosserias um ao outro, mas de maneira doce, tranqüila e azeitosa.

Alfredo permaneceu muito tempo ali. Quando os dois cansaram-se, ele desceu para o subsolo. Amanhã voltaria.

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