11 de outubro de 2010

Sr. Y. diz:


Ninguém poderia imaginar, mas naquele imenso terreno, onde existiam árvores frondosas, clareiras, crianças ranhentas, pássaros – e onde há pássaros há trinados e piados e silvos -, formigas, lesmas, pequenos roedores, flores as quais não sei o nome, pedras, barro, minhocas, frutas caídas, folhas, uma pá, um rastelo, um poço, limo, um barracão, um balanço, hoje há um prédio de 31 andares, sendo 8 deles de um banco internacional, 12 de uma seguradora, 5 de uma loja de departamentos, 2 compondo uma praça de alimentação, 3 de um complexo hospitalar e 1 de um escritório que ninguém sabe para que serve.

No subsolo deste prédio trabalhava Alfredo, o homem do almoxarifado. Organizava os produtos de limpeza, os esfregões, os baldes, os panos de chão. Vestia um uniforme azul, como o dos outros trabalhadores da limpeza. Penteava o cabelo como todos os demais, mas com a divisão um pouco mais para a esquerda. Almoçava sempre ao meio dia e meia, abria a marmita e voilà: talvez macarrão, ou arroz com feijão; ovo, salsicha; às vezes frango.

No braço direito, na altura do ombro, uma tatuagem dos tempos de juventude, um barco à vela. Ganhou-a de um primo, um hippie muito talentoso que fazia a vida produzindo artesanato e tatuagens. Deve ter feito aquela aos 16 quando viajou para a praia, decidido a não mais retornar. Ou talvez aos 15, quando fazia parte de uma turma que errava pelo bairro em busca de confusão. Ou teria sido aos 18, quando entrou para o exército? Recorda-se bem das primeiras semanas naquele lugar, acordava cedo, dormia tarde, fazia flexões e limpava o quartel o dia inteiro. E aprendeu a dormir abraçado com as botas pra não fazerem cocô dentro delas. Depois não se lembra de praticamente mais nada. Apenas de Márcio, um soldado com quem passava as folgas jogando xadrez; aprendeu a jogar muito bem xadrez, pena que há muito não praticava. Mas lembra-se de ter aprendido a dar um xeque mate em oito jogadas, quase sempre funcionava, a não ser quando o adversário também conhecia o truque. Gostava de pensar o jogo como se fosse uma espécie de luta naval, os barcos atravessando aquele mar quadriculado aparentemente calmo, repleto de armadilhas letais.

Não se lembrava muito bem quando tinha visto aquela figura pela primeira vez. Tratava-se de uma mulher trajando um tailleur muito elegante, metida numas meias escuras e num par de saltos altos, o que lhe proporcionava um certo ar agressivo. Mantinha os cabelos presos, completamente puxados para trás e uns óculos que caiam perfeitamente no rosto, tanto que pareciam ter sido feitos sob encomenda. Ela carregava uma pasta fina, sutil, aparentemente muito leve, tão leve que poderia voar pelo espaço se solta de uma altura acima da cabeça. Ela lhe pediu um apontador, mas ele lhe avisou que no almoxarifado não havia material de escritório.

- Sim, sim, o senhor está certo. Mas preciso de um.

Por sorte ele ia sair para pagar uma conta atrasada, então disse que providenciaria o apontador. Mais tarde chegou com o objeto, uma caixinha de acrílico transparente, porém não sabia onde entregá-lo, porque ela não havia lhe dito onde trabalhava e nem ele havia lhe perguntado. Então deixou o apontador sobre a mesa. Era hora de receber o material que chegava, cândida e desinfetante. O carro trazendo a encomenda chegou, ele ajudou a descarregar, conferiu a mercadoria na nota fiscal, ofereceu um café ao motorista - que recusou -, assinou o recebimento. Depois organizou as garrafas nos armários. Sentou-se um pouco na mesa, apanhou a revista de palavras cruzadas. O apontador repousava sobre a mesa. Ele o apanhou. Dava para ver a luz passar pelo compartimento de acrílico, difusa. Olhou para sala através dele. Cansou-se. Voltou para as palavras cruzadas.

No dia seguinte, assim que chegou, apressou-se, porque sabia, logo viriam seus companheiros para pegarem material para limpeza, o que realmente ocorreu - o apontador foi uma das primeiras coisas que viu, quando arremeteu à sala. Depois de executar as tarefas da manhã, resolveu descobrir quem era aquela senhora. Um telefonema à portaria resolveria o mistério, pensou, porém enganara-se. Ninguém sabia dela. Ou melhor. Sabiam de pelo menos umas sete mulheres cujas descrições eram compatíveis com a que ele fornecia daquela figura. Mesmo que ele dissesse que ela era estranha, diferente, nada adiantava. As duas recepcionistas que ele consultara responderam de maneiras muito parecidas, levantando hipóteses que iam de uma gerente a uma acionista, passando por algumas secretárias e funcionárias das empresas instaladas no prédio.

Questionou algumas das pessoas que limpavam os andares. As respostas não iam além do que forneceram as recepcionistas. Mas elas o aconselharam a perguntar para Elis, uma velha senhora que trabalhara por muito tempo com Sr. Biene, o dono da empresa contratada para executar a manutenção diária do prédio, já falecido. Ela tinha um papel ambíguo, não era funcionária de nenhuma empresa que ocupava os andares e também não era mais exatamente uma funcionária da empresa que cuidava da manutenção do edifício, tinham deixado-a trabalhar no local por piedade e ninguém sabia ao certo quem lhe pagava o salário e quem lhe dava ordens. De qualquer forma, vivia para cima e para baixo, ajudando no que podia, repetindo sempre frases sussurradas de gratidão ao Sr. Biene.

- Nunca vi essa moça antes não. Por que o senhor não verifica no andar 31?

Ele não havia pensado nessa possibilidade, porém, agora aquela parecia a decisão mais óbvia. Rumou no mesmo instante ao elevador, o apontador em punho. No caminho tropeçou em duas pessoas; já dentro da caixa de metal balançava o corpo para frente e para trás, até que ele alcançasse o trigésimo andar, de onde teria de subir de escada até o topo do prédio, porque o elevador não levava até lá.

O corredor parecia mais longo do que nos outros andares e aquilo o perturbou, já que tal constatação soava ilógica. - Talvez porque pareça mais silencioso do que as outras partes do conjunto, eu sinta como se tudo fosse maior. - Forçou a primeira porta, encontrava-se trancada. Depois a segunda: o mesmo ocorreu. A terceira estava destrancada e todas as demais também, no entanto, nada havia nas respectivas salas. O coração palpitava apressado quando restavam mais duas portas ao final do corredor. Abriu a penúltima, ninguém. Contudo, havia algo de diferente em uma das salas: uma mesa, uma cadeira, um telefone e um armário antigo de escritório, daqueles de ferro, cujas gavetas podem ser trancadas à chave. Olhou ao redor, não havia viv’alma. Deu meia volta e correu para a última porta, mas as salas daquele espaço estavam completamente vazias. Lembrou-se das duas primeiras portas, teria de descer até o subsolo e buscar as chaves e o fez o mais depressa que pode, porém, ao alcançar o mural onde se mantinham as chaves, descobriu: nele não havia cópias das portas das salas do trigésimo primeiro andar. Quando saía, encontrou-se com Simplício a buscar um balde novo.

- Oras, pegue lá dentro, Simplício.

Alcançou o último andar: suava. Forçou as duas primeiras portas, pensou em arrombá-las, mas teve medo de romper o silêncio com algum estrondo que porventura resultasse da empreitada. O coração descompassava. Teve uma idéia: pensou em ir para alguma sala ao lado, sair pela janela, andar pelo beiral e alcançar as janelas respectivas às portas trancadas.

- Alfredo. Você está enlouquecendo. Por que precisa entrar nestas salas? Você nem se lembra onde colocou o apontador...

Derrotado, caminhava em direção às escadarias, quando resolveu olhar a sala onde havia a mesa, o telefone, a cadeira, o armário, pela última vez. Ao se aproximar do local, percebeu que a porta encontrava-se entreaberta. Aquilo o intrigou, porque tinha certeza de tê-la fechado. E estava certo: ao se aproximar, escutou vozes. Desta forma, agachou-se e, vagarosamente, espiou pela fresta. A mulher! Era ela! E havia também um homem completamente careca, usando um tapa olho. Ele estava sentado na cadeira, só era possível vê-lo do tronco para cima, do ângulo em que se encontrava Alfredo. Ele tinha o rosto embebido em volúpia, fitava a mulher com os olhos semicerrados. Quanto a ela, circulava pela sala, lentamente, movendo os quadris a cada passo, medindo o homem careca, fazendo as mãos passearem pelo próprio corpo; e eles diziam grosserias um ao outro, mas de maneira doce, tranqüila e azeitosa.

Alfredo permaneceu muito tempo ali. Quando os dois cansaram-se, ele desceu para o subsolo. Amanhã voltaria.

28 de setembro de 2010

Sr. G. diz:

Mas isso de jogar sinuca é coisa de gente matreira.

Nunca vi pirata em navio e o único mastro que vejo naquelas mãos mastigadas é o pedaço fino e longo de pau. Os piratas sabem jogar - também sabem quebrar os tacos na sua cabeça enquanto está de costas, e furar seus olhos com a ponta quebrada.

Eles bebem sua cerveja quando vai ao banheiro - por isso a recomendação de beber antes de sair da mesa (nunca tudo, pra que “também possam beber”, e de um jeito alegre e nunca desconfiado, porque os piratas tem foices pontiagudas que rasgam sua bochecha: é deste furo que preferem beber de sua cerveja). Não trazer muita moeda é outra boa escolha, mas não trazer moeda alguma periga de levantar suspeitas -e os piratas sabem como ninguém levantar suspeitas. Não se deve confiar em nada do que dizem, mas transparecer que estão mentindo é um erro que pode custar caro: o que resta é sempre sorrir -não muito- e aceitar o que escapa daquela boca de poucos dentes. Outra boa recomendação é a de nunca recusar um convite para o jogo, que a recusa sempre ofende pela desconfiança: já que se deve jogar, entender sua mandinga é absolutamente-necessário: eles nunca apostam dinheiro na primeira rodada e sempre perdem, na segunda apostam pouco e de novo você ganha, ai aumentam a aposta e continuam perdendo e te pagando -recusar a próxima, sempre mais alta que a anterior, é ofensivo e desaconselhável ... tudo estratégia de mentes astutas e corações lépidos.

No fim da noite, quando sua algibeira estiver lotada, não gaste um centavo em bebida, que é motivo de encrenca. Tentar sair sem chamar atenção é das alternativas (invariavelmente erradas), a menos prejudicial: certifique-se -com apalpadelas nada chamativas- de que as moedas estão bem guardadas no bolso, se levante da cadeira -diga ir ao banheiro-, coloque o taco sobre a mesa, abra a portinhola e, e corra. É assim que -por algum meandro da fortuna, sempre inevitável- aqueles que te esperam lá fora, antes aos roncos e quase pelados, ouvem os ecos de tua fuga e correm pra te pegar -eles são sempre mais rápidos. Envolvido por aqueles braços desproporcionais, receba os despojos de tua vitória.

29 de junho de 2010

Sr. Y. diz:


Augusto também era o nome do irmão de criação de Manuel. Manuel gostava de contar três episódios ocorridos na vida de Augusto:

01) De pequeno, Augusto uma vez prendeu o dedo em um vão de uma cadeira que havia em casa. Ninguém percebeu e ele mesmo nenhuma força empreendeu para chamar a atenção dos pais, dos irmãos, para que o ajudassem. Ao final da refeição, todos deixaram a mesa, só Augusto não se retirou. Então alguém notou o moleque, os olhos duros, o dedo preso, roxo; tiveram de serrar o móvel, para libertarem Augusto e ele teve o dedo amputado pelo Dr. Fieira, chamado às pressas à casa.

02) Certa feita, em uma andança pelos arredores, ainda garoto, Augusto se viu cercado por uma dúzia de moleques da rua de baixo - sempre a rua de baixo -; ele, Romeu e Frederico; os últimos dois deram com o sebo nas canelas e Augusto se deixou ficar. Ninguém nunca soube dizer se se tratava de uma atitude investida de coragem ou algum tipo de paralisia freqüente em momentos de extrema tensão e medo. Fato é que os tais moleques da rua de baixo apenas o cercaram e lhe deram alguns empurrões; ele não chorou, não se defendeu, só se manteve ali, com os olhos parados; logo o deixaram, talvez por não enxergarem graça em esmurrar alguém que não reagia, talvez por algum outro motivo, quem sabe?

03) Recentemente, quando o sogro, Seo Aristides, o humilhou publicamente, aproveitando-se de certa dívida que Augusto havia com ele, não baixou a cabeça em nenhum momento, não sorriu, não falou. Apenas estacou ali, enquanto as palavras rudes de Seo Aristides passavam por ele. Depois, quando o homem se foi, Augusto entrou no barracão do fundo da casa, apanhou um regador e foi molhar umas plantas que cresciam a olhos vistos.

Manuel deve dinheiro a Augusto, não pagou ainda, apesar de já ter a quantia guardada debaixo do colchão. Até hoje tenta copiar o jeito que o irmão faz com a boca, ao se preparar em alguma tacada, no jogo de sinuca.

20 de junho de 2010

Sr. G., acho, vem balbuciando algo do tipo:

Augusto. Era assim que Tio Mauro chamava a verruga enraizada em suas costas. Ele tinha um jardim de verrugas nas banhas, mas só ela lhe atazanava a vida: era uma verruga imensa e ramificada e, ele nos contava já quase naufragado no meio fio, muito da coceirenta.

Tio Mauro era um grande cara, amigo de todos. Passava as tardes no Babilônia e perto da noite se esparramava de bêbado, se esparramava de bêbado e dormia esparramado na calçada, se esparramava de bêbado e dormia esparramado na calçada com a cabeça pendendo na rua. E a gente brindava o costume. Tio Mauro não acordava de jeito maneira: os moleques chutavam sua barriga e ele roncava mais alto e todos ali no bar caíamos na gargalhada.

Tio Mauro era grande e gordo, como as pombas da praça que ele tanto teimava em alimentar. Tio Mauro sequestrava as pombas mais parrudas e levava para sua casa, para o quintal ao fundo de sua casa, para o poleiro no quintal ao fundo de sua casa (acho que era por isso que fedia tanto). Tia Ruth não se importava com as manias do marido e era sempre muito alegre e risonha e Tio Mauro a tratava muito bem (Tia Ruth às vezes ensaiava uma discussão séria, mas era Tio Mauro bater na barriga com suas duas mãos carnosas, abrir um sorriso por entre o enorme bigode e dizer com sua voz roliça: Minha Pombinha! e ela fechava as asas e lhe dava uma tentativa de abraço: Tia Ruth era mirrada e suas mãos quase nem chegavam no começo da barriga de Tio Mauro).

Tio Mauro, toda quinta, fazia churrasco em sua casa e todo mundo ia. A casa era pequena e as pessoas se amontoavam umas sobre as outras. Todos bebíamos muito e esperávamos ansiosos a carne sair da brasa. As pessoas desconfiavam da carne mas ninguém perguntava, porque Tio Mauro era muito, muito gentil e nunca cobrava nada e todo mundo era sempre convidado. O Manuel, numa dessas quintas, disse que Tio Mauro nunca tinha comprado carne lá. Ai não teve jeito, a discussão correu solta e quase se transformou numa algazarra daquelas: John se esqueceu dos bons modos e só não arrancou o turbante de seu Mohamed a pontapés porque Tio Mauro abriu a porta bem na hora e, descortinando seu sorriso gordo e gostoso, anunciou: Vamo minha gente que a carne não vem voando pra cá. E a gente foi, como antes e como depois, porque a gente sempre ia. Até o Frido ia (Frido sempre falava que não estava servido, que tinha acabado de sair do restaurante, onde, por acaso, justo hoje, comeu as sobras da janta. Mas era sentir o cheiro da carne e ver Valentina, a afilhada de Seu Venceslau, se empoleirar entre os ombros dos homens pra se servir do espeto, que Frido corria a servi-la e a galantear promessas de um almoço exclusivo para O Honorabilissíssimo Señor Venceslau de Costa y Silva E Sua Mui Graciosa Apadrinada).

Tio Mauro, pelo que contam, só tinha intrigas com Madalena. Madalena, a Cigana. Era quase etérea, quase bruxa. Nunca sabíamos por onde andava porque seus pés, parecia, sugavam para si as pegadas: ela se desvelava como se não tivesse surgido e trazia os segredos presos em sua língua felina: ela adivinhava as perguntas em nosso íntimo e nos dava as respostas. Madalena gostava muito de pombas e vivia com elas no corpo. Via Tio Mauro na praça e saía gritando. Era então que Tio Mauro desarmava o imenso sorriso e ia pro Babilônia, arrastando os pesarrões pelo chão e cutucando Augusto, a fim de nos encontrar para a jogatina.

Tio Mauro quem ensinou os Botelhos a arte do dominó: João vivia carregando suas peças no branco dos olhos e por isso perdia sempre, Márcio tinha as mangas por demais curtas e por isso era sempre pego e chutado pra fora do Babilônia; dizem que a cicatriz que lhe atravessa o olho direito é sequela de uma das suas tentativas frustradas: dizem, e eu seria capaz de assumir a autoria, que Seu Abraão, na época já muito, muito velho (eu achava que Seu Abraão era o homem mais velho de nossa terra; que já nasceu velho e cheio de rugas porque no seu barraco –ele mora num barraco a cinco quadras do poleiro de Tio Mauro- as fotos são todas desbotadas. Ele foi sempre velho e por isso todos lhe tratavam com respeito e por isso ninguém lhe ouvia repetir e repetir a mesma história de quando, ainda moço, foi amigo do imperador e sabia) que Seu Abraão, na época já muito, muito velho, levantou-se da mesa e destruiu o copo de “pinga” no rosto de Márcio (a gente servia água dizendo que era pinga porque Seu Abraão era muito, muito doente e já não sentia nada).

Tio Mauro, sim, enchia a lata. Um dia se esparramou na calçada e os moleques chutaram sua barriga e ninguém ouviu seu ronco alto.

Augusto nunca mais lhe tirou do sossego.

2 de junho de 2010

Sr. Y. diz:


(MORREU ENFORCADO EM UMA GRAVATA PRETA. João Botelho, 45, deu cabo da vida na madrugada passada, utilizando uma gravata preta amarrada em um galho de Boa Fortuna. Roberto Calles, da perícia policial, disse, aparentemente surpreso, "não é fácil se enforcar com um pedaço tão pequeno de pano, o trabalho foi muito bem executado". Mas, no geral, apesar da eficiência do morto, o público leitor desse renomado jornal não se comoverá em demasia, mesmo que seja sabida a potencialização de sofrimento advindo do encurtamento da tira onde se enforca a vítima, posto que em uma tira longa as cervicais se partem, causando extermínio imediato, o que não ocorre quando se utiliza uma tira curta, porque o meio de se chegar a morte então não é senão a asfixia, o que certamente prolonga o martírio. Tampouco tornará mais atraente o ocorrido informar que o morto não legou nenhuma carta ao público, de escrito, apenas a letra E desenhada em seu punho esquerdo, à caneta; talvez se faça um pouco menos desinteressante saber que o morto, como de costume nesses casos, cagou-se todo enquanto agonizava.)

João Botelho costumava jogar dominó com os amigos aos domingos. À tarde, porque de manhã fazia feira com a mulher, isso quando ela o acompanhava, já que tantas vezes ela tinha as roupas em atraso, baldes transbordando os tecidos coloridos. Houve apenas um domingo em que João Botelho não compareceu à jogatina, quando da morte de Mauro, tio dele muito considerado. Um dia esquisito, no mínimo, aquele, chovia a cântaros, ruas sendo lavadas pelas enxurradas, a chuva, parecia, nunca haveria de cessar. Os carros que seguiam para o funeral foram impedidos de seguir, devido à força das enchentes, não havendo possibilidade de se alcançar o cemitério. Temendo que o corpo do considerado tio apodrecesse, concluíram que deveriam chegar ao cemitério a qualquer preço. Alguém emprestou um caminhão, cuja caçamba logo foi tomada pelo povo que acompanhava o funeral, o que causou um novo problema, não havia espaço para se carregar o caixão, sendo assim, precisaram providenciar uma maneira de levar o tio: um barco emprestado por seu Frido, barco esse nunca utilizado em reais condições, visto que servira, até então, apenas como enfeite no restaurante do citado proprietário. Desta feita, tio Mauro, contido em seu caixão, passou a desfilar pelas ruas acomodado em um barco, o barco preso a uma corda puxada pelo caminhão. Talvez seja desnecessário dizer que a corda, não apropriada para tais situações adversas, rebentou-se em dado momento, deixando tio Mauro à deriva, o povo todo atirando-se à água, em busca dele.

- Tio Mauro sempre foi liso que nem sabonete.

O barco desapareceu no horizonte e não deram conta de o alcançar. Mas, dias depois, a enchente finda, encontraram o bólido estacionado debaixo da árvore onde tio Mauro certa vez intencionara pedir Ruth em casamento - isto não ocorrera, ele acabou por executar o ato em frente ao açougue de seu Manuel, tamanha ansiedade que o tomava por inteiro. De qualquer forma, enterram tio Mauro embaixo da tal árvore, um ipê de flores amarelas, e tia Ruth logo avisou que, ao morrer, desejava que a enterrassem no mesmo local.

Mas, que interessa? Vamos a João Botelho, o grande jogador de dominó, segundo contam, parecia reconhecer as pintas nas pedras, sem que precisasse realmente visualizá-las, tratava-se praticamente de um místico do jogo, se imaginava um dobro de sena, obviamente haveria de serem doze as inscrições na parte oculta da pedra em questão; no entanto, dizia, tal poder nunca funcionava se houvesse dinheiro envolvido na brincadeira, sua clarividência apenas funcionava em jogos amistosos sem concorrência monetária - isto nunca se comprovara, até então, porque não houve vez em que João Botelho tenha jogado a dinheiro, o que o obrigava, desta maneira, a sobreviver de um outro ofício, no caso, o de alfaiate, o que não lhe trazia fortunas, porém possibilitava alimentação e moradia para ele e a mulher.

Certa feita ganhou na loteria, comprou uma bela casa, a mulher raiava de felicidade, João Botelho nunca presenciara tamanha alegria no semblante e trejeitos da esposa. Todavia, logo o resultado da loteria mostrou-se um engodo, um mal entendido, já que o autêntico vencedor fora um rico da região, seu Venceslau, que, penalizando-se de João Botelho, acabou por lhe comprar e doar a referida casa. Sendo assim, mesmo sem o dinheiro da contenda, a mulher continuou feliz e, por isso, também João Botelho, a cada sorriso da esposa, ele sentia um prazer enorme, e acabava por querer lhe fazer tudo, lhe escovava os cabelos, trazia frutas e flores, lavava a louça, pintava dela as unhas, preparava surpresas e não dormia à noite, fazendo-lhe todas as carícias, mesmo que viesse a acordar cedo no dia seguinte para enfrentar a labuta.

É quando uma invasão de formigas se instaura na casa, a mulher e João Botelho a travarem longas batalhas contra as pequeninas. Por um tempo as mantiveram sobre controle, porém, as formigas, as formigas, com elas ninguém pode, inverteram o jogo e dominaram todo o território, constatou um João exausto; e se fosse apenas isso... também logo a pintura da casa passou a escurecer, descascar, o piso perdeu o brilho de outrora, torneiras pingavam, portas rangiam, ainda que João Botelho se propusesse a reparos, mas nada pode contra o tempo e a falta de recursos.

(Talvez se pergunte se João Botelho não tivera filhos que poderiam tê-lo ajudado. Sim, trata-se de uma consideração que se revela verdadeira, estão em registros dois filhos de João Botelho com a mulher: um padre a trabalhar em terras distantes, considerado um santo, o que, provavelmente está mais relacionado com as histórias contadas por João Botelho do que com santidade propriamente dita, visto que João Botelho, notando a feição silenciosa, quase estóica, do menino, e uma mancha na testa deste, vivia espalhando pela cidade boatos sobre modestos feitos miraculosos do filho; e também uma moça que ninguém nunca soube exatamente o motivo, tinha fama de ser marginal, procurada até pela polícia, talvez por falar demais, quem garante? Fato é que nenhum dos dois estava presente para ajudar João Botelho a derrotar as formigas.)

Havia também Márcio Botelho, irmão de João Botelho. Este havia feito dinheiro no oeste, tratava-se de um desses aventureiros repletos de histórias heróicas, do gênero que vive às custas de apostas e/ ou de mulheres; trambiques e achaques, mas mui respeitosamente, afinal, tratava-se de um homem essencialmente bom. Vinha fugido de longe, acusado de fraude e acesso a informações privilegiadas. Chegara na região há pouco mais de dois meses, o bolso repleto de dinheiros. Gostava de comer azeitonas, tomar champanhe e fugia quando o assunto era banho, porque dizia, o perfume francês já dava conta do futum.

Houve, obviamente, uma jogatina na qual participaram ambos irmãos, o místico e o pirata, não é preciso informar quem venceu, a mulher de João Botelho o deixou, ele pensou em morrer, escreveu um pequeno texto onde se imaginava como um personagem do caderno policial do periódico da região, a gravata e o fim, daí para diante escreveu também cinco tomos nos quais narrou a história de oito gerações de andorinhas em viagem ao mundo em busca do verão perfeito. Também aproveitou para, foice em punho, expulsar o irmão da cidade, porque este já havia rapelado quase toda a população do local. Continua o trabalho como alfaiate. Misteriosamente, as formigas desapareceram.


Sr. G. diz:


As quatro ou cinco mortes de João Botelho: João Botelho tentou se matar, ainda criança, pulando no rio de sua cidade, e não teve sucesso. Daí em diante foi ribanceira abaixo: cresceu e se transformou num cara legal, trabalhador e desenhista. Um dia enfiou seu lápis na garganta e desabou, abatido, o rosto sobre o papel em sua mesa: o sucesso que tanto sonhava: exposições com sua aquarela e a alcunha de prodígio das artes metalinguísticas. Numa destas galerias, enquanto bebericava seu champagne, conheceria sua terceira namorada, a quem apelidaria, não sem carinho, de Nut. Com Nut teria a oportunidade de conhecer a paixão desenfreada, a dor da traição, uma boa dose de chumbinho e, talvez, Paola, que lhe encontraria perdido numa noite de lamentos e exortações. Paola roubaria sua carteira e racharia seu crânio com o salto de sua tamanca gasta. Agonizando na calçada, João Botelho não teria a oportunidade de conhecer sua verdadeira e autêntica morte ao sair cambaleante do velório de sua segunda mulher, atravessar a rua e ser atingido por um caminhão desgovernado.