2 de junho de 2010

Sr. Y. diz:


(MORREU ENFORCADO EM UMA GRAVATA PRETA. João Botelho, 45, deu cabo da vida na madrugada passada, utilizando uma gravata preta amarrada em um galho de Boa Fortuna. Roberto Calles, da perícia policial, disse, aparentemente surpreso, "não é fácil se enforcar com um pedaço tão pequeno de pano, o trabalho foi muito bem executado". Mas, no geral, apesar da eficiência do morto, o público leitor desse renomado jornal não se comoverá em demasia, mesmo que seja sabida a potencialização de sofrimento advindo do encurtamento da tira onde se enforca a vítima, posto que em uma tira longa as cervicais se partem, causando extermínio imediato, o que não ocorre quando se utiliza uma tira curta, porque o meio de se chegar a morte então não é senão a asfixia, o que certamente prolonga o martírio. Tampouco tornará mais atraente o ocorrido informar que o morto não legou nenhuma carta ao público, de escrito, apenas a letra E desenhada em seu punho esquerdo, à caneta; talvez se faça um pouco menos desinteressante saber que o morto, como de costume nesses casos, cagou-se todo enquanto agonizava.)

João Botelho costumava jogar dominó com os amigos aos domingos. À tarde, porque de manhã fazia feira com a mulher, isso quando ela o acompanhava, já que tantas vezes ela tinha as roupas em atraso, baldes transbordando os tecidos coloridos. Houve apenas um domingo em que João Botelho não compareceu à jogatina, quando da morte de Mauro, tio dele muito considerado. Um dia esquisito, no mínimo, aquele, chovia a cântaros, ruas sendo lavadas pelas enxurradas, a chuva, parecia, nunca haveria de cessar. Os carros que seguiam para o funeral foram impedidos de seguir, devido à força das enchentes, não havendo possibilidade de se alcançar o cemitério. Temendo que o corpo do considerado tio apodrecesse, concluíram que deveriam chegar ao cemitério a qualquer preço. Alguém emprestou um caminhão, cuja caçamba logo foi tomada pelo povo que acompanhava o funeral, o que causou um novo problema, não havia espaço para se carregar o caixão, sendo assim, precisaram providenciar uma maneira de levar o tio: um barco emprestado por seu Frido, barco esse nunca utilizado em reais condições, visto que servira, até então, apenas como enfeite no restaurante do citado proprietário. Desta feita, tio Mauro, contido em seu caixão, passou a desfilar pelas ruas acomodado em um barco, o barco preso a uma corda puxada pelo caminhão. Talvez seja desnecessário dizer que a corda, não apropriada para tais situações adversas, rebentou-se em dado momento, deixando tio Mauro à deriva, o povo todo atirando-se à água, em busca dele.

- Tio Mauro sempre foi liso que nem sabonete.

O barco desapareceu no horizonte e não deram conta de o alcançar. Mas, dias depois, a enchente finda, encontraram o bólido estacionado debaixo da árvore onde tio Mauro certa vez intencionara pedir Ruth em casamento - isto não ocorrera, ele acabou por executar o ato em frente ao açougue de seu Manuel, tamanha ansiedade que o tomava por inteiro. De qualquer forma, enterram tio Mauro embaixo da tal árvore, um ipê de flores amarelas, e tia Ruth logo avisou que, ao morrer, desejava que a enterrassem no mesmo local.

Mas, que interessa? Vamos a João Botelho, o grande jogador de dominó, segundo contam, parecia reconhecer as pintas nas pedras, sem que precisasse realmente visualizá-las, tratava-se praticamente de um místico do jogo, se imaginava um dobro de sena, obviamente haveria de serem doze as inscrições na parte oculta da pedra em questão; no entanto, dizia, tal poder nunca funcionava se houvesse dinheiro envolvido na brincadeira, sua clarividência apenas funcionava em jogos amistosos sem concorrência monetária - isto nunca se comprovara, até então, porque não houve vez em que João Botelho tenha jogado a dinheiro, o que o obrigava, desta maneira, a sobreviver de um outro ofício, no caso, o de alfaiate, o que não lhe trazia fortunas, porém possibilitava alimentação e moradia para ele e a mulher.

Certa feita ganhou na loteria, comprou uma bela casa, a mulher raiava de felicidade, João Botelho nunca presenciara tamanha alegria no semblante e trejeitos da esposa. Todavia, logo o resultado da loteria mostrou-se um engodo, um mal entendido, já que o autêntico vencedor fora um rico da região, seu Venceslau, que, penalizando-se de João Botelho, acabou por lhe comprar e doar a referida casa. Sendo assim, mesmo sem o dinheiro da contenda, a mulher continuou feliz e, por isso, também João Botelho, a cada sorriso da esposa, ele sentia um prazer enorme, e acabava por querer lhe fazer tudo, lhe escovava os cabelos, trazia frutas e flores, lavava a louça, pintava dela as unhas, preparava surpresas e não dormia à noite, fazendo-lhe todas as carícias, mesmo que viesse a acordar cedo no dia seguinte para enfrentar a labuta.

É quando uma invasão de formigas se instaura na casa, a mulher e João Botelho a travarem longas batalhas contra as pequeninas. Por um tempo as mantiveram sobre controle, porém, as formigas, as formigas, com elas ninguém pode, inverteram o jogo e dominaram todo o território, constatou um João exausto; e se fosse apenas isso... também logo a pintura da casa passou a escurecer, descascar, o piso perdeu o brilho de outrora, torneiras pingavam, portas rangiam, ainda que João Botelho se propusesse a reparos, mas nada pode contra o tempo e a falta de recursos.

(Talvez se pergunte se João Botelho não tivera filhos que poderiam tê-lo ajudado. Sim, trata-se de uma consideração que se revela verdadeira, estão em registros dois filhos de João Botelho com a mulher: um padre a trabalhar em terras distantes, considerado um santo, o que, provavelmente está mais relacionado com as histórias contadas por João Botelho do que com santidade propriamente dita, visto que João Botelho, notando a feição silenciosa, quase estóica, do menino, e uma mancha na testa deste, vivia espalhando pela cidade boatos sobre modestos feitos miraculosos do filho; e também uma moça que ninguém nunca soube exatamente o motivo, tinha fama de ser marginal, procurada até pela polícia, talvez por falar demais, quem garante? Fato é que nenhum dos dois estava presente para ajudar João Botelho a derrotar as formigas.)

Havia também Márcio Botelho, irmão de João Botelho. Este havia feito dinheiro no oeste, tratava-se de um desses aventureiros repletos de histórias heróicas, do gênero que vive às custas de apostas e/ ou de mulheres; trambiques e achaques, mas mui respeitosamente, afinal, tratava-se de um homem essencialmente bom. Vinha fugido de longe, acusado de fraude e acesso a informações privilegiadas. Chegara na região há pouco mais de dois meses, o bolso repleto de dinheiros. Gostava de comer azeitonas, tomar champanhe e fugia quando o assunto era banho, porque dizia, o perfume francês já dava conta do futum.

Houve, obviamente, uma jogatina na qual participaram ambos irmãos, o místico e o pirata, não é preciso informar quem venceu, a mulher de João Botelho o deixou, ele pensou em morrer, escreveu um pequeno texto onde se imaginava como um personagem do caderno policial do periódico da região, a gravata e o fim, daí para diante escreveu também cinco tomos nos quais narrou a história de oito gerações de andorinhas em viagem ao mundo em busca do verão perfeito. Também aproveitou para, foice em punho, expulsar o irmão da cidade, porque este já havia rapelado quase toda a população do local. Continua o trabalho como alfaiate. Misteriosamente, as formigas desapareceram.


2 comentários:

misson disse...

pouca saúde e muita saúva, os males do brasil são.

Q. disse...

Ouvi uma vez que formigas eram "piratas ínfimos".