18 de abril de 2011

Sr. Y. diz:


A verdade é que um homem pode perder o dinheiro, os dentes e até a vontade de viver. Não há nada que ele não possa perder; perde também imperceptíveis partes de si, gases que se vão, pedaços de pele, unhas, merda, óleo. E apanha o mundo nas partes do seu corpo, mas, o que é o seu corpo e o que é esse mundo, meu camarada? Que homem é esse que sai para a labuta e volta o mesmo, mas tão diferente que seria impossível dizer que ele é ele? Você não percebe - diz o velho Saulo a Samuel -, meu homem, que quando saí eu ainda não tinha visto aquela boiada rasgando a velha estrada, assim como um dia eu tinha esses cabelos curtos e, agora, além de os ter alvos & longos, também manquitolo?

Samuel segurou o lampião com as duas mãos e o pousou sobre a mesa. Disse: Só sei que me chamo Samuel e isso é tudo, oras. Mas sabia também, por exemplo, das tardes passadas deitado com os moços na relva, ali próximo do ribeirão, enquanto Saulo cruzava o mundo. Ele mesmo permanecia de longe, mas se deleitava com os corpos seminus se lançando à água e trabalhando em brincadeiras de força e delícia. Mas precisava de um jogo com Saulo, o maldito, mesmo que um jogo estúpido – e o que faz de um jogo estúpido? De nós três, eu era o único que me mantinha em jogo ao mesmo tempo que permanecia à borda, quase fora das quatro linhas (ou do círculo). Saulo e Samuel sempre se atiraram mais para dentro da demarcação, no que se refere a “eles”, mesmo que o jogo não lhes fosse o predileto. Mosca morta, esse aí, às vezes Samuel dizia de mim. Saulo apenas me provocava com olhares e vez ou outra com um tapa de leve nas minhas nádegas – Ei, seu, quem te disse que podia...? – ou com uma baforada de fumaça do cigarro bem nas minhas fuças. Já entre os dois funcionava de um jeito evidentemente mais intenso, se é que esta é uma boa palavra para descrever como se dava a relação onde um implicava o outro sempre que possível, mas, claro, cada qual a sua maneira: Samuel sempre com resmungões sôfregos e Saulo com saltos e discursos alucinados. Não preciso dizer que me aprazia muito mais o jeito de Saulo, o facínora e sua pose profética, mas como já dissera, eu girava mais pelas beiradas do que avançava para o miolo, tateando as cordas enquanto o combate se dava no círculo central...

- Que me importam suas insalubridades?

Saulo olhou para a porta, apontou com o dedo, disse que lá longe existia um novo ferro velho, precisamos aportar lá em busca de diversão, seu velho viado de uma figa. (Nesse trecho da carta estranhei. Antigamente Saulo faria menção a um puteiro ou, pelo menos, a um boteco onde se pudesse arranjar uma garrafa de aguardente ou uma boa briga ou o que seria melhor: simultâneos os dois itens. Tentei descobrir que diabos o velho Saulo iria querer com um ferro velho, mas logo a resposta viria no decorrer da carta). O velho pigarreou e disse com voz de trovão – cuja vibração posso sentir aqui, agora mesmo, enquanto deito essas palavras – lá nos fundos do ferro velho tem uma espécie de galpão para onde eles levam umas garotas, juram que são maiores, mas duvido, e a gente pode dar tapas nas caras delas, Samuel, sua bichona, você iria adorar. Dito assim parece uma espécie de ritual satânico, mas que nada, Deus sabe que não, porque elas gostam, sabia? Elas pedem. Quero dizer, no começo não, no começo a maioria delas parece amedrontada e com certeza enganam a maioria dos figurões que aportam lá, eles pagam uma nota pra poder dar na cara delas, mas, como eu dizia, elas entram com aquelas caras de mijonas, mas eu sou um homem marcado pelo tempo, macaco velho sacana de uma figa, percebo logo que não passa de conversa fiada: elas chegam daquele jeito para deixar os infelizes excitadinhos por se sentirem no poder. Depois dos primeiros tapas, para dar continuidade à brincadeira, elas mudam o comportamento: iniciam uma espécie de rebelião, ofendem aqueles que as espancam e aí apanham ainda mais e passam a implorar por uma bela surra e há gente se masturbando pelos cantos e seguem assim, uns batem, outros apanham, mas fica nisso, não se pode ir além, é a lei, mas é quase divertido, você deveria tentar, Samuel, meu velho. Ou talvez preferisse apanhar, porque, de qualquer forma, aquelas meninas parecem receber um bom dinheiro pelos safanões que recebem.

Quando Samuel se aproximou de nós? Parece que foi quando me mudei para outra cidade, na época em que Paulo nasceu. Saulo andava muito próximo a um contrabandista, fazendo pequenos trabalhos para esse cara para ganhar algum dinheiro e comendo a mulher do dito cujo sem, é óbvio, que esse soubesse. Um dia Saulo salvou o filho do homem ministrando algumas poções preparadas com ervas – conhecimento de muitas gerações – e recebeu, por isso, algumas peças de ouro (não é porque não esperava recompensa nenhuma que Saulo a recusou). Quando conseguiu um contato para vender o material, conheceu Samuel, guarda costas do tal receptor e, no mesmo instante resolveram que precisavam encontrar um lugar, depressa, para darem conta de uma atração implacável. Saulo enrabou Samuel enlouquecidamente em um lavatório, dizendo, QUE AS PALAVRAS DO SENHOR ENCONTREM O TEU CORAÇÃO, INFIEL! Mas posso estar enganado, já vi tanto Saulo quanto Samuel contarem pelo menos três ou quatro histórias bem diferentes. O ponto é que, a partir daí a relação tomou outros rumos, eles inventaram maneiras de estarem juntos, Saulo casou-se uma época com uma mulher vinte anos mais nova que ele, mas quem cuidava da garota era Samuel, se é que você me entende, enquanto Saulo saía em suas andanças; Saulo e Samuel viveram separados por quinze anos, comunicando-se apenas por cartas; Saulo e Samuel foram vizinhos e brigaram por causa do cachorro que Saulo tivera, à época, porque ele urinava nas begônias de Samuel; Saulo e Samuel montaram um negócio; Saulo e Samuel faliram, etc, um enorme enfadonho contar a história desses dois, SAULO & SAMUEL, mas o fato é Saulo sempre precisou cruzar as cidades e, ao retornar, me mostrava por onde passara, desenhando um mapa sem o menor pudor cartográfico, isto é, não se tratavam de léguas, nem meridianos, tratavam-se de parâmetros doentios: Quantas bundas havia comido? E bocetas? Como sobreviveu embriagado por tanto tempo? Brigas: ainda doía aquela cadeirada? Houve algum “encaixe” mal elaborado? Cada chupada, como havia sido? E aquela história de queimar o outro com cigarro? Para que lugar não deixava nunca de retornar, sem nunca, na verdade, voltar, desenhando parábolas cada vez mais abertas, no limiar da explosão?

Samuel também tateava limiares, mas de outra ordem, passeava um tanto próximo aos meus territórios, sem, porém, arremeter-se contra eles. Odiava Deus, julgava Saulo um pequeno aproveitador, disseminando a palavra, blá, blá, blá, era assim que ele se referia ao que Saulo considerava NECESSÁRIO & DESEJÁVEL: QUE O PECADO CAIA SOBRE TUAS CABEÇAS COMO UMA CHUVA DE PORRA SOBRE UMA LÍNGUA SACIOSA, alguma coisa assim. E Saulo lavava as cerâmicas, limpava o chão, tingia os tecidos, cerzia cuidadosamente cada detalhe nas túnicas, comia apenas o suficiente, não por obrigação ou temor, mas por sabedoria, o semblante sempre confiante e alegre, as palavras ditas pausadamente, refletidas e macias: o porém era quando Saulo vinha, a maciez ia para os diabos, ou gemia e gritava palavras duras enquanto se deitavam e se deliciavam, ou resmungava pelos cantos, sempre encerrado em uma sala escura, castigado, mesmo que houvessem janelas e portas à disposição e sóis irradiando calor.

E Saulo foi atropelado: você não acredita, meu amigo, havia acabado de descobrir a maravilha que é cavalgar, atravessar as clareiras dos bosques à noite, incentivando o animal, cortando por entre as árvores; imagine você, eu, um velho, e só agora aprendi a viver com os cavalos, conversar com eles. Resolvi-me por um passeio dia desses e não sei como não ouvi uma boiada que era conduzida por uma estrada estreita, o tombo foi feio, mas poderia ter sido pior, agora uso uma bengala e manco da perna direita – o cavalo não sofreu um arranhão! -, mas não tem problemas, não perdi o trato com os bichos, posso passar horas conversando com eles, no curral.

- Eu recebo cartas de Saulo com bastante regularidade: algumas curtíssimas como essa da qual transcrevi aqui alguns trechos misturados as minhas REMEMORAÇÕES; outras longas, quando ele permanece meses em outras paragens - ou quando passa um tempo vivendo em círculos fechados até que consiga alargá-los. Espero poder encontrá-lo em breve, de preferência sem Samuel, não que eu não tenha apreço por ele, mas o jogo entre ambos me entedia, então prefiro mesmo que Saulo venha só, muito provavelmente eu não conseguirei acompanhá-lo, mas quero que ele ao menos me mostre, ao menos me faça ver alguma coisa que NÃO SE PODE. -

3 de abril de 2011

Sr. G., gaguejando, enfim:

Saulo, de braços erguidos, empunhando uma das espadas-de-são-jorge que arrancara do jardim, corria nu em nossa direção; e nós fugíamos por sobre as plantas, esmagando as begônias, sentindo o aroma das madressilvas se misturando ao nosso cheiro de homens feitos; corríamos arrancando as peças surradas do uniforme da Empresa, abençoando o momento do contato, quando o caule santo se tornaria verdume em nossa carne; e já no fim, exaustos, nós nos lançávamos nas flores ainda maculadas pelos meus cuidados do dia anterior e esperávamos Saulo recuperar o fôlego exaurido e irromper com um de seus ensinamentos: Nos guiemos sempre pelo exemplo que a natureza de bom grado nos concede: a Pinguicula, onde descansamos nossos corpos, se esforça para absorver o pedaço de carne que pousamos em sua corola, e por mais inútil que seja este esforço, morre pela gula.


Era cedo quando pela primeira vez o vi. Do outro lado da rua, apoiado naquele moribundo de cartola. Cruzaram a rua e deram de encontro com Sóstenes, que, em seguida, atravessado a catraca, se dispôs a falar do “abuso e da covardia destes vagabundos”. Depois subiu. E eu fiquei, pensando no serviço, esperando ansioso o horário de bater o cartão de mais uma tarde, para o dinheiro que o Administrador me vendia quando cuidava das flores do Edifício.

Mas Saulo veio, e soube ficar.

Sóstenes dizia de como nunca mais deixou de topá-lo: ao lado dos vendedores ambulantes de relógios, dos camelôs de DVDs a preços populares; com mulheresderrua ou cercado por homens fortes-de-gravata: sempre ele, magrelo, cabelos desgrenhados, a âncora espetada no ombro esquerdo e as acnes corroídas no rosto.

Estranha a ligação que se fixou entre ambos, Sóstenes e Saulo. Se falaram uma semana depois, no boteco que íamos com meu irmão. Naquele dia fiquei em casa. Ele me contou a história em nosso horário de almoço, quando já também eu fazia parte dos apóstolos. Eu estava no bar, ele me narrou, olhando pra uma das mulheres que dançava sozinha; queria criar qualquer tipo de coragem para uma conversa e olhava aquele corpinho se remexendo e me encurvava mais no balcão, aí então ela me olhou e eu levantei o copo e chamei para que se sentasse cá comigo e ela me acenou e com os dedos disse ‘pêra lá, vou no banheiro e já me aconchego por aí’ e eu virei o copo e pedi mais duas doses; foi então que Saulo me agradeceu e de um gole liquidou meu cortejo; Ei rapaz, eu falei, esse copo era meu; ele me olhou e sorriu e se sentou ao meu lado; disse, apertando minha coxa,

- aquela mulher está comigo, camarada;

e eu pedi desculpas, desculpa, eu não sabia e não quero causar qualquer tipo de confusão, amigo; então conversamos sobre futebol e depois sobre aquele dia, quando, na rua, eu tinha visto ele pela primeira vez; ele ria muito; riu gostoso e me passou os primeiros ensinamentos dizendo que os sábios são feitos para serem enganados pela loucura e os fortes para serem massacrados pela fraqueza; bebemos muito; estava amanhecendo quando Saulo, todo torto, se despediu de mim e foi falar com aquela mulher que dançava - com o cigarro pendendo da boca, se apoiando, largado, na parede, trocou duas ou três palavras e a moça lhe jogou a cerveja na cara e saiu batendo a tamanca no chão...

Com Saulo bebíamos e éramos felizes. Mijávamos nas flores escondidos das câmeras e sorríamos. Os dias com ele eram sempre cheios de obscenidades e fantasias absurdas. Saulo nos fez chafurdar nas alegrias da alma: no jogo, que era sempre violento; no sexo, que se transformava em escoriações por todo o corpo; no álcool, que era a bênção de todas os dias e em tudo o mais que a lustrosa e beatífica presença de Saulo nos inspirava.

Nos levou para casa de Maria e lá anunciou que Aqui o espaço é sagrado porque se vê batom no pescoço e barba na cueca. Saulo se abraçava com as mulheres e gritava alto: “Minha mãe me ensinou que vosso corpo, minhas primas, é o templo de deus; e eu vim aqui pra rezar!” Todos demonstrávamos estranheza, uma certa ojeriza por aquilo que se presenciava, mas o encanto que ele tinha e sabia projetar sobre nós era demasiado forte para nos esquivarmos. Estávamos sempre à sua volta, ouvindo suas palavras, as histórias que nos contava sobre deus e as vontades dos homens. Gostávamos de chamá-lo Profeta e ele ria. “Se meu primo ama o escândalo serei o escândalo porque é essa a minha obrigação”. E quando perguntávamos de Maria, ele costumava responder que “se estou ligado a mulher não me separarei da mulher, mas se estou livre da mulher não procuro a mulher porque assim me foi ordenado”.


No último andar do Edifício, ao estardalhaço dos sons que eram projetados pelas caixas de autofalantes, olhávamos Maria despencar pela janela sua urina santa; era a voz de Saulo que nos ecoava como oração barulhenta e desuniforme enquanto nosso desejo era nos lançarmos às pernas de Maria, bebermos de si a magreza de seu corpo nu; e a madrugada já nos corroía o cansaço e toda a sujeira nos fazia rir pelos gritos que ouviríamos do Administrador, ríamos e nos contorcíamos e nos atentávamos à fala de Saulo, que gritava sobre a fraqueza do homem e a força de sua palavra; o silêncio, ele dizia, é poderoso porque é a própria palavra pecadora, e por isso não sou dado à discursos e o pecado é nossa benção e nosso leite; se teu olho peca, sê teu olho.


Numa manhã, passávamos por uma igreja cheia de gente e perguntamos o que ele pensava. Nos contou, então, a história de um Motoboy e um Passarinho:

- Minha mãe certa vez me contou que um Motoboy saiu de manhã para o trabalho e quando atravessava o quarteirão sentiu um impacto no capacete. Parou a moto e viu no asfalto um Passarinho caído, com as asas tortas. Pensou que estava morto, mas quando chegou mais perto, percebeu que o bicho, mesmo apagado, ainda respirava. Se compadeceu com a fragilidade da situação: deixar a rolinha no asfalto seria sentenciá-la à morte por atropelamento. Resolveu, então, voltar para seu barraco. Lá, deitou o bichinho na mesa e tentou acudi-lo, mas tinha pressa para acordá-lo, que o dia estava cheio de tarefas; cutucava e nada, e espetava e nada, e acariciava e nada. Tinha de partir mas não podia, simplesmente, largá-lo lá, porque se o bicho, por ventura, acordasse e tentasse voar, podia cair e se tornar presa fácil do cachorro, e ali, na mesa, sem sua proteção, se tornaria comida dos gatos da vizinhança. Então o Motoboy procurou uma gaiola e alojou-o lá dentro junto com um pouco de água e migalhas de um pão velho, para caso dele acordar com fome. Isso feito, partiu em sua moto e correu para o serviço. No meio da tarde o Passarinho acordou, olhou para as grades de ferro, e para a água amarelada, e para a comida dura, e pensou: putaquepariu, matei o cara.

Outro dia, enquanto Maria lhe alisava os cabelos do peito e um de nós aquecia os jantares roubados da copa do Edifício, perguntaram sobre a âncora em seu braço:

- É uma homenagem ao corpo, minhas rolinhas, que o corpo é a âncora da alma.

E o que é a alma, Saulo?

- A alma, meu primo, é um iate cheio de mulher pelada e bebida.

Gostávamos de trafegar atrás de suas palavras, desejosos de mais ensinamentos. Saulo falava muito de Deus. Certa vez nos disse, quando já capengava:

- Deus brinca de esconde conosco, meus primos.

Então um dia a gente pega ele?

- Não, porque se trata duma brincadeira de esconde num quarto infinito, e a gentalha nem parou de contar até dez.

E você?

- Minha mãe abriu uma fenda entre os meus dedos e eu pude olhar e por isso fui castigado e por isso me sirvo à mesa da canalha; agora me passa essa garrafa.

E então abriu a garrafa e deixou a espuma se espalhar pela mesa. Aí jogou uma das mulheres que nos acompanhavam em cima dela e ficou tentando lambê-la enquanto a moça esperneava. Sóstenes olhava com olhos cada vez mais de admiração e espanto: Saulo sempre nos espantava, mas era em Sóstenes que essa admiração resplandecia uma paixão cega e maravilhosa.

- Vou te dizer uma coisa, meu primo, Deus é sempre o não pensado, tá sempre se escondendo. Minha mãe me disse que são várias as representações de Deus na nossa história e, eu te digo, todas verdades obsoletas. É desse deus que sou profeta. E eu aprendi que o profeta deve se misturar à sujeira, porque é dever dele se aproximar dos homens, se esborniar com os homens para salvar eles: o profeta é escolhido e não deve se furtar, é uma obrigação que lhe é imposta, meu primo, me traz outra garrafa.


A velha sem dentes, aqueles olhos azuis de gemas mortas, as lágrimas em cristais líquidos por entre as córneas desalmadas, o pano rosa de gorduras e restos de sujeira tapando-lhe os cabelos ralos e brancos, os pelos do queixo já emaranhados, sentada na mesa de madeira, batendo uma gengiva na outra, com as caspas polvilhando seu avental descolorido pelo tempo; ela gritava para Saulo, que pensava estar na sala ao lado, divisa entre a cozinha e o mundo todo, trazer um pouco d’água - e ele correndo, correndo a servi-la, a lhe falar gracejos de criança - e nós, fantasmas, quietos, sombras de som, prostrados ao seu entorno, ávidos por nos fazer presentes, estando lá com a condição de não estarmos, sentindo no ar pestilento de sua cozinha a força de sua presença, e a faca cega raspando a rapadura até amontoar o suficiente, que com as costas da mesma faca ela ajeitava às costas de sua mão trêmula que tamborilava o ar ao encontro de seu hálito podre.

11 de outubro de 2010

Sr. Y. diz:


Ninguém poderia imaginar, mas naquele imenso terreno, onde existiam árvores frondosas, clareiras, crianças ranhentas, pássaros – e onde há pássaros há trinados e piados e silvos -, formigas, lesmas, pequenos roedores, flores as quais não sei o nome, pedras, barro, minhocas, frutas caídas, folhas, uma pá, um rastelo, um poço, limo, um barracão, um balanço, hoje há um prédio de 31 andares, sendo 8 deles de um banco internacional, 12 de uma seguradora, 5 de uma loja de departamentos, 2 compondo uma praça de alimentação, 3 de um complexo hospitalar e 1 de um escritório que ninguém sabe para que serve.

No subsolo deste prédio trabalhava Alfredo, o homem do almoxarifado. Organizava os produtos de limpeza, os esfregões, os baldes, os panos de chão. Vestia um uniforme azul, como o dos outros trabalhadores da limpeza. Penteava o cabelo como todos os demais, mas com a divisão um pouco mais para a esquerda. Almoçava sempre ao meio dia e meia, abria a marmita e voilà: talvez macarrão, ou arroz com feijão; ovo, salsicha; às vezes frango.

No braço direito, na altura do ombro, uma tatuagem dos tempos de juventude, um barco à vela. Ganhou-a de um primo, um hippie muito talentoso que fazia a vida produzindo artesanato e tatuagens. Deve ter feito aquela aos 16 quando viajou para a praia, decidido a não mais retornar. Ou talvez aos 15, quando fazia parte de uma turma que errava pelo bairro em busca de confusão. Ou teria sido aos 18, quando entrou para o exército? Recorda-se bem das primeiras semanas naquele lugar, acordava cedo, dormia tarde, fazia flexões e limpava o quartel o dia inteiro. E aprendeu a dormir abraçado com as botas pra não fazerem cocô dentro delas. Depois não se lembra de praticamente mais nada. Apenas de Márcio, um soldado com quem passava as folgas jogando xadrez; aprendeu a jogar muito bem xadrez, pena que há muito não praticava. Mas lembra-se de ter aprendido a dar um xeque mate em oito jogadas, quase sempre funcionava, a não ser quando o adversário também conhecia o truque. Gostava de pensar o jogo como se fosse uma espécie de luta naval, os barcos atravessando aquele mar quadriculado aparentemente calmo, repleto de armadilhas letais.

Não se lembrava muito bem quando tinha visto aquela figura pela primeira vez. Tratava-se de uma mulher trajando um tailleur muito elegante, metida numas meias escuras e num par de saltos altos, o que lhe proporcionava um certo ar agressivo. Mantinha os cabelos presos, completamente puxados para trás e uns óculos que caiam perfeitamente no rosto, tanto que pareciam ter sido feitos sob encomenda. Ela carregava uma pasta fina, sutil, aparentemente muito leve, tão leve que poderia voar pelo espaço se solta de uma altura acima da cabeça. Ela lhe pediu um apontador, mas ele lhe avisou que no almoxarifado não havia material de escritório.

- Sim, sim, o senhor está certo. Mas preciso de um.

Por sorte ele ia sair para pagar uma conta atrasada, então disse que providenciaria o apontador. Mais tarde chegou com o objeto, uma caixinha de acrílico transparente, porém não sabia onde entregá-lo, porque ela não havia lhe dito onde trabalhava e nem ele havia lhe perguntado. Então deixou o apontador sobre a mesa. Era hora de receber o material que chegava, cândida e desinfetante. O carro trazendo a encomenda chegou, ele ajudou a descarregar, conferiu a mercadoria na nota fiscal, ofereceu um café ao motorista - que recusou -, assinou o recebimento. Depois organizou as garrafas nos armários. Sentou-se um pouco na mesa, apanhou a revista de palavras cruzadas. O apontador repousava sobre a mesa. Ele o apanhou. Dava para ver a luz passar pelo compartimento de acrílico, difusa. Olhou para sala através dele. Cansou-se. Voltou para as palavras cruzadas.

No dia seguinte, assim que chegou, apressou-se, porque sabia, logo viriam seus companheiros para pegarem material para limpeza, o que realmente ocorreu - o apontador foi uma das primeiras coisas que viu, quando arremeteu à sala. Depois de executar as tarefas da manhã, resolveu descobrir quem era aquela senhora. Um telefonema à portaria resolveria o mistério, pensou, porém enganara-se. Ninguém sabia dela. Ou melhor. Sabiam de pelo menos umas sete mulheres cujas descrições eram compatíveis com a que ele fornecia daquela figura. Mesmo que ele dissesse que ela era estranha, diferente, nada adiantava. As duas recepcionistas que ele consultara responderam de maneiras muito parecidas, levantando hipóteses que iam de uma gerente a uma acionista, passando por algumas secretárias e funcionárias das empresas instaladas no prédio.

Questionou algumas das pessoas que limpavam os andares. As respostas não iam além do que forneceram as recepcionistas. Mas elas o aconselharam a perguntar para Elis, uma velha senhora que trabalhara por muito tempo com Sr. Biene, o dono da empresa contratada para executar a manutenção diária do prédio, já falecido. Ela tinha um papel ambíguo, não era funcionária de nenhuma empresa que ocupava os andares e também não era mais exatamente uma funcionária da empresa que cuidava da manutenção do edifício, tinham deixado-a trabalhar no local por piedade e ninguém sabia ao certo quem lhe pagava o salário e quem lhe dava ordens. De qualquer forma, vivia para cima e para baixo, ajudando no que podia, repetindo sempre frases sussurradas de gratidão ao Sr. Biene.

- Nunca vi essa moça antes não. Por que o senhor não verifica no andar 31?

Ele não havia pensado nessa possibilidade, porém, agora aquela parecia a decisão mais óbvia. Rumou no mesmo instante ao elevador, o apontador em punho. No caminho tropeçou em duas pessoas; já dentro da caixa de metal balançava o corpo para frente e para trás, até que ele alcançasse o trigésimo andar, de onde teria de subir de escada até o topo do prédio, porque o elevador não levava até lá.

O corredor parecia mais longo do que nos outros andares e aquilo o perturbou, já que tal constatação soava ilógica. - Talvez porque pareça mais silencioso do que as outras partes do conjunto, eu sinta como se tudo fosse maior. - Forçou a primeira porta, encontrava-se trancada. Depois a segunda: o mesmo ocorreu. A terceira estava destrancada e todas as demais também, no entanto, nada havia nas respectivas salas. O coração palpitava apressado quando restavam mais duas portas ao final do corredor. Abriu a penúltima, ninguém. Contudo, havia algo de diferente em uma das salas: uma mesa, uma cadeira, um telefone e um armário antigo de escritório, daqueles de ferro, cujas gavetas podem ser trancadas à chave. Olhou ao redor, não havia viv’alma. Deu meia volta e correu para a última porta, mas as salas daquele espaço estavam completamente vazias. Lembrou-se das duas primeiras portas, teria de descer até o subsolo e buscar as chaves e o fez o mais depressa que pode, porém, ao alcançar o mural onde se mantinham as chaves, descobriu: nele não havia cópias das portas das salas do trigésimo primeiro andar. Quando saía, encontrou-se com Simplício a buscar um balde novo.

- Oras, pegue lá dentro, Simplício.

Alcançou o último andar: suava. Forçou as duas primeiras portas, pensou em arrombá-las, mas teve medo de romper o silêncio com algum estrondo que porventura resultasse da empreitada. O coração descompassava. Teve uma idéia: pensou em ir para alguma sala ao lado, sair pela janela, andar pelo beiral e alcançar as janelas respectivas às portas trancadas.

- Alfredo. Você está enlouquecendo. Por que precisa entrar nestas salas? Você nem se lembra onde colocou o apontador...

Derrotado, caminhava em direção às escadarias, quando resolveu olhar a sala onde havia a mesa, o telefone, a cadeira, o armário, pela última vez. Ao se aproximar do local, percebeu que a porta encontrava-se entreaberta. Aquilo o intrigou, porque tinha certeza de tê-la fechado. E estava certo: ao se aproximar, escutou vozes. Desta forma, agachou-se e, vagarosamente, espiou pela fresta. A mulher! Era ela! E havia também um homem completamente careca, usando um tapa olho. Ele estava sentado na cadeira, só era possível vê-lo do tronco para cima, do ângulo em que se encontrava Alfredo. Ele tinha o rosto embebido em volúpia, fitava a mulher com os olhos semicerrados. Quanto a ela, circulava pela sala, lentamente, movendo os quadris a cada passo, medindo o homem careca, fazendo as mãos passearem pelo próprio corpo; e eles diziam grosserias um ao outro, mas de maneira doce, tranqüila e azeitosa.

Alfredo permaneceu muito tempo ali. Quando os dois cansaram-se, ele desceu para o subsolo. Amanhã voltaria.

28 de setembro de 2010

Sr. G. diz:

Mas isso de jogar sinuca é coisa de gente matreira.

Nunca vi pirata em navio e o único mastro que vejo naquelas mãos mastigadas é o pedaço fino e longo de pau. Os piratas sabem jogar - também sabem quebrar os tacos na sua cabeça enquanto está de costas, e furar seus olhos com a ponta quebrada.

Eles bebem sua cerveja quando vai ao banheiro - por isso a recomendação de beber antes de sair da mesa (nunca tudo, pra que “também possam beber”, e de um jeito alegre e nunca desconfiado, porque os piratas tem foices pontiagudas que rasgam sua bochecha: é deste furo que preferem beber de sua cerveja). Não trazer muita moeda é outra boa escolha, mas não trazer moeda alguma periga de levantar suspeitas -e os piratas sabem como ninguém levantar suspeitas. Não se deve confiar em nada do que dizem, mas transparecer que estão mentindo é um erro que pode custar caro: o que resta é sempre sorrir -não muito- e aceitar o que escapa daquela boca de poucos dentes. Outra boa recomendação é a de nunca recusar um convite para o jogo, que a recusa sempre ofende pela desconfiança: já que se deve jogar, entender sua mandinga é absolutamente-necessário: eles nunca apostam dinheiro na primeira rodada e sempre perdem, na segunda apostam pouco e de novo você ganha, ai aumentam a aposta e continuam perdendo e te pagando -recusar a próxima, sempre mais alta que a anterior, é ofensivo e desaconselhável ... tudo estratégia de mentes astutas e corações lépidos.

No fim da noite, quando sua algibeira estiver lotada, não gaste um centavo em bebida, que é motivo de encrenca. Tentar sair sem chamar atenção é das alternativas (invariavelmente erradas), a menos prejudicial: certifique-se -com apalpadelas nada chamativas- de que as moedas estão bem guardadas no bolso, se levante da cadeira -diga ir ao banheiro-, coloque o taco sobre a mesa, abra a portinhola e, e corra. É assim que -por algum meandro da fortuna, sempre inevitável- aqueles que te esperam lá fora, antes aos roncos e quase pelados, ouvem os ecos de tua fuga e correm pra te pegar -eles são sempre mais rápidos. Envolvido por aqueles braços desproporcionais, receba os despojos de tua vitória.

29 de junho de 2010

Sr. Y. diz:


Augusto também era o nome do irmão de criação de Manuel. Manuel gostava de contar três episódios ocorridos na vida de Augusto:

01) De pequeno, Augusto uma vez prendeu o dedo em um vão de uma cadeira que havia em casa. Ninguém percebeu e ele mesmo nenhuma força empreendeu para chamar a atenção dos pais, dos irmãos, para que o ajudassem. Ao final da refeição, todos deixaram a mesa, só Augusto não se retirou. Então alguém notou o moleque, os olhos duros, o dedo preso, roxo; tiveram de serrar o móvel, para libertarem Augusto e ele teve o dedo amputado pelo Dr. Fieira, chamado às pressas à casa.

02) Certa feita, em uma andança pelos arredores, ainda garoto, Augusto se viu cercado por uma dúzia de moleques da rua de baixo - sempre a rua de baixo -; ele, Romeu e Frederico; os últimos dois deram com o sebo nas canelas e Augusto se deixou ficar. Ninguém nunca soube dizer se se tratava de uma atitude investida de coragem ou algum tipo de paralisia freqüente em momentos de extrema tensão e medo. Fato é que os tais moleques da rua de baixo apenas o cercaram e lhe deram alguns empurrões; ele não chorou, não se defendeu, só se manteve ali, com os olhos parados; logo o deixaram, talvez por não enxergarem graça em esmurrar alguém que não reagia, talvez por algum outro motivo, quem sabe?

03) Recentemente, quando o sogro, Seo Aristides, o humilhou publicamente, aproveitando-se de certa dívida que Augusto havia com ele, não baixou a cabeça em nenhum momento, não sorriu, não falou. Apenas estacou ali, enquanto as palavras rudes de Seo Aristides passavam por ele. Depois, quando o homem se foi, Augusto entrou no barracão do fundo da casa, apanhou um regador e foi molhar umas plantas que cresciam a olhos vistos.

Manuel deve dinheiro a Augusto, não pagou ainda, apesar de já ter a quantia guardada debaixo do colchão. Até hoje tenta copiar o jeito que o irmão faz com a boca, ao se preparar em alguma tacada, no jogo de sinuca.

20 de junho de 2010

Sr. G., acho, vem balbuciando algo do tipo:

Augusto. Era assim que Tio Mauro chamava a verruga enraizada em suas costas. Ele tinha um jardim de verrugas nas banhas, mas só ela lhe atazanava a vida: era uma verruga imensa e ramificada e, ele nos contava já quase naufragado no meio fio, muito da coceirenta.

Tio Mauro era um grande cara, amigo de todos. Passava as tardes no Babilônia e perto da noite se esparramava de bêbado, se esparramava de bêbado e dormia esparramado na calçada, se esparramava de bêbado e dormia esparramado na calçada com a cabeça pendendo na rua. E a gente brindava o costume. Tio Mauro não acordava de jeito maneira: os moleques chutavam sua barriga e ele roncava mais alto e todos ali no bar caíamos na gargalhada.

Tio Mauro era grande e gordo, como as pombas da praça que ele tanto teimava em alimentar. Tio Mauro sequestrava as pombas mais parrudas e levava para sua casa, para o quintal ao fundo de sua casa, para o poleiro no quintal ao fundo de sua casa (acho que era por isso que fedia tanto). Tia Ruth não se importava com as manias do marido e era sempre muito alegre e risonha e Tio Mauro a tratava muito bem (Tia Ruth às vezes ensaiava uma discussão séria, mas era Tio Mauro bater na barriga com suas duas mãos carnosas, abrir um sorriso por entre o enorme bigode e dizer com sua voz roliça: Minha Pombinha! e ela fechava as asas e lhe dava uma tentativa de abraço: Tia Ruth era mirrada e suas mãos quase nem chegavam no começo da barriga de Tio Mauro).

Tio Mauro, toda quinta, fazia churrasco em sua casa e todo mundo ia. A casa era pequena e as pessoas se amontoavam umas sobre as outras. Todos bebíamos muito e esperávamos ansiosos a carne sair da brasa. As pessoas desconfiavam da carne mas ninguém perguntava, porque Tio Mauro era muito, muito gentil e nunca cobrava nada e todo mundo era sempre convidado. O Manuel, numa dessas quintas, disse que Tio Mauro nunca tinha comprado carne lá. Ai não teve jeito, a discussão correu solta e quase se transformou numa algazarra daquelas: John se esqueceu dos bons modos e só não arrancou o turbante de seu Mohamed a pontapés porque Tio Mauro abriu a porta bem na hora e, descortinando seu sorriso gordo e gostoso, anunciou: Vamo minha gente que a carne não vem voando pra cá. E a gente foi, como antes e como depois, porque a gente sempre ia. Até o Frido ia (Frido sempre falava que não estava servido, que tinha acabado de sair do restaurante, onde, por acaso, justo hoje, comeu as sobras da janta. Mas era sentir o cheiro da carne e ver Valentina, a afilhada de Seu Venceslau, se empoleirar entre os ombros dos homens pra se servir do espeto, que Frido corria a servi-la e a galantear promessas de um almoço exclusivo para O Honorabilissíssimo Señor Venceslau de Costa y Silva E Sua Mui Graciosa Apadrinada).

Tio Mauro, pelo que contam, só tinha intrigas com Madalena. Madalena, a Cigana. Era quase etérea, quase bruxa. Nunca sabíamos por onde andava porque seus pés, parecia, sugavam para si as pegadas: ela se desvelava como se não tivesse surgido e trazia os segredos presos em sua língua felina: ela adivinhava as perguntas em nosso íntimo e nos dava as respostas. Madalena gostava muito de pombas e vivia com elas no corpo. Via Tio Mauro na praça e saía gritando. Era então que Tio Mauro desarmava o imenso sorriso e ia pro Babilônia, arrastando os pesarrões pelo chão e cutucando Augusto, a fim de nos encontrar para a jogatina.

Tio Mauro quem ensinou os Botelhos a arte do dominó: João vivia carregando suas peças no branco dos olhos e por isso perdia sempre, Márcio tinha as mangas por demais curtas e por isso era sempre pego e chutado pra fora do Babilônia; dizem que a cicatriz que lhe atravessa o olho direito é sequela de uma das suas tentativas frustradas: dizem, e eu seria capaz de assumir a autoria, que Seu Abraão, na época já muito, muito velho (eu achava que Seu Abraão era o homem mais velho de nossa terra; que já nasceu velho e cheio de rugas porque no seu barraco –ele mora num barraco a cinco quadras do poleiro de Tio Mauro- as fotos são todas desbotadas. Ele foi sempre velho e por isso todos lhe tratavam com respeito e por isso ninguém lhe ouvia repetir e repetir a mesma história de quando, ainda moço, foi amigo do imperador e sabia) que Seu Abraão, na época já muito, muito velho, levantou-se da mesa e destruiu o copo de “pinga” no rosto de Márcio (a gente servia água dizendo que era pinga porque Seu Abraão era muito, muito doente e já não sentia nada).

Tio Mauro, sim, enchia a lata. Um dia se esparramou na calçada e os moleques chutaram sua barriga e ninguém ouviu seu ronco alto.

Augusto nunca mais lhe tirou do sossego.

2 de junho de 2010

Sr. Y. diz:


(MORREU ENFORCADO EM UMA GRAVATA PRETA. João Botelho, 45, deu cabo da vida na madrugada passada, utilizando uma gravata preta amarrada em um galho de Boa Fortuna. Roberto Calles, da perícia policial, disse, aparentemente surpreso, "não é fácil se enforcar com um pedaço tão pequeno de pano, o trabalho foi muito bem executado". Mas, no geral, apesar da eficiência do morto, o público leitor desse renomado jornal não se comoverá em demasia, mesmo que seja sabida a potencialização de sofrimento advindo do encurtamento da tira onde se enforca a vítima, posto que em uma tira longa as cervicais se partem, causando extermínio imediato, o que não ocorre quando se utiliza uma tira curta, porque o meio de se chegar a morte então não é senão a asfixia, o que certamente prolonga o martírio. Tampouco tornará mais atraente o ocorrido informar que o morto não legou nenhuma carta ao público, de escrito, apenas a letra E desenhada em seu punho esquerdo, à caneta; talvez se faça um pouco menos desinteressante saber que o morto, como de costume nesses casos, cagou-se todo enquanto agonizava.)

João Botelho costumava jogar dominó com os amigos aos domingos. À tarde, porque de manhã fazia feira com a mulher, isso quando ela o acompanhava, já que tantas vezes ela tinha as roupas em atraso, baldes transbordando os tecidos coloridos. Houve apenas um domingo em que João Botelho não compareceu à jogatina, quando da morte de Mauro, tio dele muito considerado. Um dia esquisito, no mínimo, aquele, chovia a cântaros, ruas sendo lavadas pelas enxurradas, a chuva, parecia, nunca haveria de cessar. Os carros que seguiam para o funeral foram impedidos de seguir, devido à força das enchentes, não havendo possibilidade de se alcançar o cemitério. Temendo que o corpo do considerado tio apodrecesse, concluíram que deveriam chegar ao cemitério a qualquer preço. Alguém emprestou um caminhão, cuja caçamba logo foi tomada pelo povo que acompanhava o funeral, o que causou um novo problema, não havia espaço para se carregar o caixão, sendo assim, precisaram providenciar uma maneira de levar o tio: um barco emprestado por seu Frido, barco esse nunca utilizado em reais condições, visto que servira, até então, apenas como enfeite no restaurante do citado proprietário. Desta feita, tio Mauro, contido em seu caixão, passou a desfilar pelas ruas acomodado em um barco, o barco preso a uma corda puxada pelo caminhão. Talvez seja desnecessário dizer que a corda, não apropriada para tais situações adversas, rebentou-se em dado momento, deixando tio Mauro à deriva, o povo todo atirando-se à água, em busca dele.

- Tio Mauro sempre foi liso que nem sabonete.

O barco desapareceu no horizonte e não deram conta de o alcançar. Mas, dias depois, a enchente finda, encontraram o bólido estacionado debaixo da árvore onde tio Mauro certa vez intencionara pedir Ruth em casamento - isto não ocorrera, ele acabou por executar o ato em frente ao açougue de seu Manuel, tamanha ansiedade que o tomava por inteiro. De qualquer forma, enterram tio Mauro embaixo da tal árvore, um ipê de flores amarelas, e tia Ruth logo avisou que, ao morrer, desejava que a enterrassem no mesmo local.

Mas, que interessa? Vamos a João Botelho, o grande jogador de dominó, segundo contam, parecia reconhecer as pintas nas pedras, sem que precisasse realmente visualizá-las, tratava-se praticamente de um místico do jogo, se imaginava um dobro de sena, obviamente haveria de serem doze as inscrições na parte oculta da pedra em questão; no entanto, dizia, tal poder nunca funcionava se houvesse dinheiro envolvido na brincadeira, sua clarividência apenas funcionava em jogos amistosos sem concorrência monetária - isto nunca se comprovara, até então, porque não houve vez em que João Botelho tenha jogado a dinheiro, o que o obrigava, desta maneira, a sobreviver de um outro ofício, no caso, o de alfaiate, o que não lhe trazia fortunas, porém possibilitava alimentação e moradia para ele e a mulher.

Certa feita ganhou na loteria, comprou uma bela casa, a mulher raiava de felicidade, João Botelho nunca presenciara tamanha alegria no semblante e trejeitos da esposa. Todavia, logo o resultado da loteria mostrou-se um engodo, um mal entendido, já que o autêntico vencedor fora um rico da região, seu Venceslau, que, penalizando-se de João Botelho, acabou por lhe comprar e doar a referida casa. Sendo assim, mesmo sem o dinheiro da contenda, a mulher continuou feliz e, por isso, também João Botelho, a cada sorriso da esposa, ele sentia um prazer enorme, e acabava por querer lhe fazer tudo, lhe escovava os cabelos, trazia frutas e flores, lavava a louça, pintava dela as unhas, preparava surpresas e não dormia à noite, fazendo-lhe todas as carícias, mesmo que viesse a acordar cedo no dia seguinte para enfrentar a labuta.

É quando uma invasão de formigas se instaura na casa, a mulher e João Botelho a travarem longas batalhas contra as pequeninas. Por um tempo as mantiveram sobre controle, porém, as formigas, as formigas, com elas ninguém pode, inverteram o jogo e dominaram todo o território, constatou um João exausto; e se fosse apenas isso... também logo a pintura da casa passou a escurecer, descascar, o piso perdeu o brilho de outrora, torneiras pingavam, portas rangiam, ainda que João Botelho se propusesse a reparos, mas nada pode contra o tempo e a falta de recursos.

(Talvez se pergunte se João Botelho não tivera filhos que poderiam tê-lo ajudado. Sim, trata-se de uma consideração que se revela verdadeira, estão em registros dois filhos de João Botelho com a mulher: um padre a trabalhar em terras distantes, considerado um santo, o que, provavelmente está mais relacionado com as histórias contadas por João Botelho do que com santidade propriamente dita, visto que João Botelho, notando a feição silenciosa, quase estóica, do menino, e uma mancha na testa deste, vivia espalhando pela cidade boatos sobre modestos feitos miraculosos do filho; e também uma moça que ninguém nunca soube exatamente o motivo, tinha fama de ser marginal, procurada até pela polícia, talvez por falar demais, quem garante? Fato é que nenhum dos dois estava presente para ajudar João Botelho a derrotar as formigas.)

Havia também Márcio Botelho, irmão de João Botelho. Este havia feito dinheiro no oeste, tratava-se de um desses aventureiros repletos de histórias heróicas, do gênero que vive às custas de apostas e/ ou de mulheres; trambiques e achaques, mas mui respeitosamente, afinal, tratava-se de um homem essencialmente bom. Vinha fugido de longe, acusado de fraude e acesso a informações privilegiadas. Chegara na região há pouco mais de dois meses, o bolso repleto de dinheiros. Gostava de comer azeitonas, tomar champanhe e fugia quando o assunto era banho, porque dizia, o perfume francês já dava conta do futum.

Houve, obviamente, uma jogatina na qual participaram ambos irmãos, o místico e o pirata, não é preciso informar quem venceu, a mulher de João Botelho o deixou, ele pensou em morrer, escreveu um pequeno texto onde se imaginava como um personagem do caderno policial do periódico da região, a gravata e o fim, daí para diante escreveu também cinco tomos nos quais narrou a história de oito gerações de andorinhas em viagem ao mundo em busca do verão perfeito. Também aproveitou para, foice em punho, expulsar o irmão da cidade, porque este já havia rapelado quase toda a população do local. Continua o trabalho como alfaiate. Misteriosamente, as formigas desapareceram.