3 de abril de 2011

Sr. G., gaguejando, enfim:

Saulo, de braços erguidos, empunhando uma das espadas-de-são-jorge que arrancara do jardim, corria nu em nossa direção; e nós fugíamos por sobre as plantas, esmagando as begônias, sentindo o aroma das madressilvas se misturando ao nosso cheiro de homens feitos; corríamos arrancando as peças surradas do uniforme da Empresa, abençoando o momento do contato, quando o caule santo se tornaria verdume em nossa carne; e já no fim, exaustos, nós nos lançávamos nas flores ainda maculadas pelos meus cuidados do dia anterior e esperávamos Saulo recuperar o fôlego exaurido e irromper com um de seus ensinamentos: Nos guiemos sempre pelo exemplo que a natureza de bom grado nos concede: a Pinguicula, onde descansamos nossos corpos, se esforça para absorver o pedaço de carne que pousamos em sua corola, e por mais inútil que seja este esforço, morre pela gula.


Era cedo quando pela primeira vez o vi. Do outro lado da rua, apoiado naquele moribundo de cartola. Cruzaram a rua e deram de encontro com Sóstenes, que, em seguida, atravessado a catraca, se dispôs a falar do “abuso e da covardia destes vagabundos”. Depois subiu. E eu fiquei, pensando no serviço, esperando ansioso o horário de bater o cartão de mais uma tarde, para o dinheiro que o Administrador me vendia quando cuidava das flores do Edifício.

Mas Saulo veio, e soube ficar.

Sóstenes dizia de como nunca mais deixou de topá-lo: ao lado dos vendedores ambulantes de relógios, dos camelôs de DVDs a preços populares; com mulheresderrua ou cercado por homens fortes-de-gravata: sempre ele, magrelo, cabelos desgrenhados, a âncora espetada no ombro esquerdo e as acnes corroídas no rosto.

Estranha a ligação que se fixou entre ambos, Sóstenes e Saulo. Se falaram uma semana depois, no boteco que íamos com meu irmão. Naquele dia fiquei em casa. Ele me contou a história em nosso horário de almoço, quando já também eu fazia parte dos apóstolos. Eu estava no bar, ele me narrou, olhando pra uma das mulheres que dançava sozinha; queria criar qualquer tipo de coragem para uma conversa e olhava aquele corpinho se remexendo e me encurvava mais no balcão, aí então ela me olhou e eu levantei o copo e chamei para que se sentasse cá comigo e ela me acenou e com os dedos disse ‘pêra lá, vou no banheiro e já me aconchego por aí’ e eu virei o copo e pedi mais duas doses; foi então que Saulo me agradeceu e de um gole liquidou meu cortejo; Ei rapaz, eu falei, esse copo era meu; ele me olhou e sorriu e se sentou ao meu lado; disse, apertando minha coxa,

- aquela mulher está comigo, camarada;

e eu pedi desculpas, desculpa, eu não sabia e não quero causar qualquer tipo de confusão, amigo; então conversamos sobre futebol e depois sobre aquele dia, quando, na rua, eu tinha visto ele pela primeira vez; ele ria muito; riu gostoso e me passou os primeiros ensinamentos dizendo que os sábios são feitos para serem enganados pela loucura e os fortes para serem massacrados pela fraqueza; bebemos muito; estava amanhecendo quando Saulo, todo torto, se despediu de mim e foi falar com aquela mulher que dançava - com o cigarro pendendo da boca, se apoiando, largado, na parede, trocou duas ou três palavras e a moça lhe jogou a cerveja na cara e saiu batendo a tamanca no chão...

Com Saulo bebíamos e éramos felizes. Mijávamos nas flores escondidos das câmeras e sorríamos. Os dias com ele eram sempre cheios de obscenidades e fantasias absurdas. Saulo nos fez chafurdar nas alegrias da alma: no jogo, que era sempre violento; no sexo, que se transformava em escoriações por todo o corpo; no álcool, que era a bênção de todas os dias e em tudo o mais que a lustrosa e beatífica presença de Saulo nos inspirava.

Nos levou para casa de Maria e lá anunciou que Aqui o espaço é sagrado porque se vê batom no pescoço e barba na cueca. Saulo se abraçava com as mulheres e gritava alto: “Minha mãe me ensinou que vosso corpo, minhas primas, é o templo de deus; e eu vim aqui pra rezar!” Todos demonstrávamos estranheza, uma certa ojeriza por aquilo que se presenciava, mas o encanto que ele tinha e sabia projetar sobre nós era demasiado forte para nos esquivarmos. Estávamos sempre à sua volta, ouvindo suas palavras, as histórias que nos contava sobre deus e as vontades dos homens. Gostávamos de chamá-lo Profeta e ele ria. “Se meu primo ama o escândalo serei o escândalo porque é essa a minha obrigação”. E quando perguntávamos de Maria, ele costumava responder que “se estou ligado a mulher não me separarei da mulher, mas se estou livre da mulher não procuro a mulher porque assim me foi ordenado”.


No último andar do Edifício, ao estardalhaço dos sons que eram projetados pelas caixas de autofalantes, olhávamos Maria despencar pela janela sua urina santa; era a voz de Saulo que nos ecoava como oração barulhenta e desuniforme enquanto nosso desejo era nos lançarmos às pernas de Maria, bebermos de si a magreza de seu corpo nu; e a madrugada já nos corroía o cansaço e toda a sujeira nos fazia rir pelos gritos que ouviríamos do Administrador, ríamos e nos contorcíamos e nos atentávamos à fala de Saulo, que gritava sobre a fraqueza do homem e a força de sua palavra; o silêncio, ele dizia, é poderoso porque é a própria palavra pecadora, e por isso não sou dado à discursos e o pecado é nossa benção e nosso leite; se teu olho peca, sê teu olho.


Numa manhã, passávamos por uma igreja cheia de gente e perguntamos o que ele pensava. Nos contou, então, a história de um Motoboy e um Passarinho:

- Minha mãe certa vez me contou que um Motoboy saiu de manhã para o trabalho e quando atravessava o quarteirão sentiu um impacto no capacete. Parou a moto e viu no asfalto um Passarinho caído, com as asas tortas. Pensou que estava morto, mas quando chegou mais perto, percebeu que o bicho, mesmo apagado, ainda respirava. Se compadeceu com a fragilidade da situação: deixar a rolinha no asfalto seria sentenciá-la à morte por atropelamento. Resolveu, então, voltar para seu barraco. Lá, deitou o bichinho na mesa e tentou acudi-lo, mas tinha pressa para acordá-lo, que o dia estava cheio de tarefas; cutucava e nada, e espetava e nada, e acariciava e nada. Tinha de partir mas não podia, simplesmente, largá-lo lá, porque se o bicho, por ventura, acordasse e tentasse voar, podia cair e se tornar presa fácil do cachorro, e ali, na mesa, sem sua proteção, se tornaria comida dos gatos da vizinhança. Então o Motoboy procurou uma gaiola e alojou-o lá dentro junto com um pouco de água e migalhas de um pão velho, para caso dele acordar com fome. Isso feito, partiu em sua moto e correu para o serviço. No meio da tarde o Passarinho acordou, olhou para as grades de ferro, e para a água amarelada, e para a comida dura, e pensou: putaquepariu, matei o cara.

Outro dia, enquanto Maria lhe alisava os cabelos do peito e um de nós aquecia os jantares roubados da copa do Edifício, perguntaram sobre a âncora em seu braço:

- É uma homenagem ao corpo, minhas rolinhas, que o corpo é a âncora da alma.

E o que é a alma, Saulo?

- A alma, meu primo, é um iate cheio de mulher pelada e bebida.

Gostávamos de trafegar atrás de suas palavras, desejosos de mais ensinamentos. Saulo falava muito de Deus. Certa vez nos disse, quando já capengava:

- Deus brinca de esconde conosco, meus primos.

Então um dia a gente pega ele?

- Não, porque se trata duma brincadeira de esconde num quarto infinito, e a gentalha nem parou de contar até dez.

E você?

- Minha mãe abriu uma fenda entre os meus dedos e eu pude olhar e por isso fui castigado e por isso me sirvo à mesa da canalha; agora me passa essa garrafa.

E então abriu a garrafa e deixou a espuma se espalhar pela mesa. Aí jogou uma das mulheres que nos acompanhavam em cima dela e ficou tentando lambê-la enquanto a moça esperneava. Sóstenes olhava com olhos cada vez mais de admiração e espanto: Saulo sempre nos espantava, mas era em Sóstenes que essa admiração resplandecia uma paixão cega e maravilhosa.

- Vou te dizer uma coisa, meu primo, Deus é sempre o não pensado, tá sempre se escondendo. Minha mãe me disse que são várias as representações de Deus na nossa história e, eu te digo, todas verdades obsoletas. É desse deus que sou profeta. E eu aprendi que o profeta deve se misturar à sujeira, porque é dever dele se aproximar dos homens, se esborniar com os homens para salvar eles: o profeta é escolhido e não deve se furtar, é uma obrigação que lhe é imposta, meu primo, me traz outra garrafa.


A velha sem dentes, aqueles olhos azuis de gemas mortas, as lágrimas em cristais líquidos por entre as córneas desalmadas, o pano rosa de gorduras e restos de sujeira tapando-lhe os cabelos ralos e brancos, os pelos do queixo já emaranhados, sentada na mesa de madeira, batendo uma gengiva na outra, com as caspas polvilhando seu avental descolorido pelo tempo; ela gritava para Saulo, que pensava estar na sala ao lado, divisa entre a cozinha e o mundo todo, trazer um pouco d’água - e ele correndo, correndo a servi-la, a lhe falar gracejos de criança - e nós, fantasmas, quietos, sombras de som, prostrados ao seu entorno, ávidos por nos fazer presentes, estando lá com a condição de não estarmos, sentindo no ar pestilento de sua cozinha a força de sua presença, e a faca cega raspando a rapadura até amontoar o suficiente, que com as costas da mesma faca ela ajeitava às costas de sua mão trêmula que tamborilava o ar ao encontro de seu hálito podre.

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