29 de junho de 2010

Sr. Y. diz:


Augusto também era o nome do irmão de criação de Manuel. Manuel gostava de contar três episódios ocorridos na vida de Augusto:

01) De pequeno, Augusto uma vez prendeu o dedo em um vão de uma cadeira que havia em casa. Ninguém percebeu e ele mesmo nenhuma força empreendeu para chamar a atenção dos pais, dos irmãos, para que o ajudassem. Ao final da refeição, todos deixaram a mesa, só Augusto não se retirou. Então alguém notou o moleque, os olhos duros, o dedo preso, roxo; tiveram de serrar o móvel, para libertarem Augusto e ele teve o dedo amputado pelo Dr. Fieira, chamado às pressas à casa.

02) Certa feita, em uma andança pelos arredores, ainda garoto, Augusto se viu cercado por uma dúzia de moleques da rua de baixo - sempre a rua de baixo -; ele, Romeu e Frederico; os últimos dois deram com o sebo nas canelas e Augusto se deixou ficar. Ninguém nunca soube dizer se se tratava de uma atitude investida de coragem ou algum tipo de paralisia freqüente em momentos de extrema tensão e medo. Fato é que os tais moleques da rua de baixo apenas o cercaram e lhe deram alguns empurrões; ele não chorou, não se defendeu, só se manteve ali, com os olhos parados; logo o deixaram, talvez por não enxergarem graça em esmurrar alguém que não reagia, talvez por algum outro motivo, quem sabe?

03) Recentemente, quando o sogro, Seo Aristides, o humilhou publicamente, aproveitando-se de certa dívida que Augusto havia com ele, não baixou a cabeça em nenhum momento, não sorriu, não falou. Apenas estacou ali, enquanto as palavras rudes de Seo Aristides passavam por ele. Depois, quando o homem se foi, Augusto entrou no barracão do fundo da casa, apanhou um regador e foi molhar umas plantas que cresciam a olhos vistos.

Manuel deve dinheiro a Augusto, não pagou ainda, apesar de já ter a quantia guardada debaixo do colchão. Até hoje tenta copiar o jeito que o irmão faz com a boca, ao se preparar em alguma tacada, no jogo de sinuca.

20 de junho de 2010

Sr. G., acho, vem balbuciando algo do tipo:

Augusto. Era assim que Tio Mauro chamava a verruga enraizada em suas costas. Ele tinha um jardim de verrugas nas banhas, mas só ela lhe atazanava a vida: era uma verruga imensa e ramificada e, ele nos contava já quase naufragado no meio fio, muito da coceirenta.

Tio Mauro era um grande cara, amigo de todos. Passava as tardes no Babilônia e perto da noite se esparramava de bêbado, se esparramava de bêbado e dormia esparramado na calçada, se esparramava de bêbado e dormia esparramado na calçada com a cabeça pendendo na rua. E a gente brindava o costume. Tio Mauro não acordava de jeito maneira: os moleques chutavam sua barriga e ele roncava mais alto e todos ali no bar caíamos na gargalhada.

Tio Mauro era grande e gordo, como as pombas da praça que ele tanto teimava em alimentar. Tio Mauro sequestrava as pombas mais parrudas e levava para sua casa, para o quintal ao fundo de sua casa, para o poleiro no quintal ao fundo de sua casa (acho que era por isso que fedia tanto). Tia Ruth não se importava com as manias do marido e era sempre muito alegre e risonha e Tio Mauro a tratava muito bem (Tia Ruth às vezes ensaiava uma discussão séria, mas era Tio Mauro bater na barriga com suas duas mãos carnosas, abrir um sorriso por entre o enorme bigode e dizer com sua voz roliça: Minha Pombinha! e ela fechava as asas e lhe dava uma tentativa de abraço: Tia Ruth era mirrada e suas mãos quase nem chegavam no começo da barriga de Tio Mauro).

Tio Mauro, toda quinta, fazia churrasco em sua casa e todo mundo ia. A casa era pequena e as pessoas se amontoavam umas sobre as outras. Todos bebíamos muito e esperávamos ansiosos a carne sair da brasa. As pessoas desconfiavam da carne mas ninguém perguntava, porque Tio Mauro era muito, muito gentil e nunca cobrava nada e todo mundo era sempre convidado. O Manuel, numa dessas quintas, disse que Tio Mauro nunca tinha comprado carne lá. Ai não teve jeito, a discussão correu solta e quase se transformou numa algazarra daquelas: John se esqueceu dos bons modos e só não arrancou o turbante de seu Mohamed a pontapés porque Tio Mauro abriu a porta bem na hora e, descortinando seu sorriso gordo e gostoso, anunciou: Vamo minha gente que a carne não vem voando pra cá. E a gente foi, como antes e como depois, porque a gente sempre ia. Até o Frido ia (Frido sempre falava que não estava servido, que tinha acabado de sair do restaurante, onde, por acaso, justo hoje, comeu as sobras da janta. Mas era sentir o cheiro da carne e ver Valentina, a afilhada de Seu Venceslau, se empoleirar entre os ombros dos homens pra se servir do espeto, que Frido corria a servi-la e a galantear promessas de um almoço exclusivo para O Honorabilissíssimo Señor Venceslau de Costa y Silva E Sua Mui Graciosa Apadrinada).

Tio Mauro, pelo que contam, só tinha intrigas com Madalena. Madalena, a Cigana. Era quase etérea, quase bruxa. Nunca sabíamos por onde andava porque seus pés, parecia, sugavam para si as pegadas: ela se desvelava como se não tivesse surgido e trazia os segredos presos em sua língua felina: ela adivinhava as perguntas em nosso íntimo e nos dava as respostas. Madalena gostava muito de pombas e vivia com elas no corpo. Via Tio Mauro na praça e saía gritando. Era então que Tio Mauro desarmava o imenso sorriso e ia pro Babilônia, arrastando os pesarrões pelo chão e cutucando Augusto, a fim de nos encontrar para a jogatina.

Tio Mauro quem ensinou os Botelhos a arte do dominó: João vivia carregando suas peças no branco dos olhos e por isso perdia sempre, Márcio tinha as mangas por demais curtas e por isso era sempre pego e chutado pra fora do Babilônia; dizem que a cicatriz que lhe atravessa o olho direito é sequela de uma das suas tentativas frustradas: dizem, e eu seria capaz de assumir a autoria, que Seu Abraão, na época já muito, muito velho (eu achava que Seu Abraão era o homem mais velho de nossa terra; que já nasceu velho e cheio de rugas porque no seu barraco –ele mora num barraco a cinco quadras do poleiro de Tio Mauro- as fotos são todas desbotadas. Ele foi sempre velho e por isso todos lhe tratavam com respeito e por isso ninguém lhe ouvia repetir e repetir a mesma história de quando, ainda moço, foi amigo do imperador e sabia) que Seu Abraão, na época já muito, muito velho, levantou-se da mesa e destruiu o copo de “pinga” no rosto de Márcio (a gente servia água dizendo que era pinga porque Seu Abraão era muito, muito doente e já não sentia nada).

Tio Mauro, sim, enchia a lata. Um dia se esparramou na calçada e os moleques chutaram sua barriga e ninguém ouviu seu ronco alto.

Augusto nunca mais lhe tirou do sossego.

2 de junho de 2010

Sr. Y. diz:


(MORREU ENFORCADO EM UMA GRAVATA PRETA. João Botelho, 45, deu cabo da vida na madrugada passada, utilizando uma gravata preta amarrada em um galho de Boa Fortuna. Roberto Calles, da perícia policial, disse, aparentemente surpreso, "não é fácil se enforcar com um pedaço tão pequeno de pano, o trabalho foi muito bem executado". Mas, no geral, apesar da eficiência do morto, o público leitor desse renomado jornal não se comoverá em demasia, mesmo que seja sabida a potencialização de sofrimento advindo do encurtamento da tira onde se enforca a vítima, posto que em uma tira longa as cervicais se partem, causando extermínio imediato, o que não ocorre quando se utiliza uma tira curta, porque o meio de se chegar a morte então não é senão a asfixia, o que certamente prolonga o martírio. Tampouco tornará mais atraente o ocorrido informar que o morto não legou nenhuma carta ao público, de escrito, apenas a letra E desenhada em seu punho esquerdo, à caneta; talvez se faça um pouco menos desinteressante saber que o morto, como de costume nesses casos, cagou-se todo enquanto agonizava.)

João Botelho costumava jogar dominó com os amigos aos domingos. À tarde, porque de manhã fazia feira com a mulher, isso quando ela o acompanhava, já que tantas vezes ela tinha as roupas em atraso, baldes transbordando os tecidos coloridos. Houve apenas um domingo em que João Botelho não compareceu à jogatina, quando da morte de Mauro, tio dele muito considerado. Um dia esquisito, no mínimo, aquele, chovia a cântaros, ruas sendo lavadas pelas enxurradas, a chuva, parecia, nunca haveria de cessar. Os carros que seguiam para o funeral foram impedidos de seguir, devido à força das enchentes, não havendo possibilidade de se alcançar o cemitério. Temendo que o corpo do considerado tio apodrecesse, concluíram que deveriam chegar ao cemitério a qualquer preço. Alguém emprestou um caminhão, cuja caçamba logo foi tomada pelo povo que acompanhava o funeral, o que causou um novo problema, não havia espaço para se carregar o caixão, sendo assim, precisaram providenciar uma maneira de levar o tio: um barco emprestado por seu Frido, barco esse nunca utilizado em reais condições, visto que servira, até então, apenas como enfeite no restaurante do citado proprietário. Desta feita, tio Mauro, contido em seu caixão, passou a desfilar pelas ruas acomodado em um barco, o barco preso a uma corda puxada pelo caminhão. Talvez seja desnecessário dizer que a corda, não apropriada para tais situações adversas, rebentou-se em dado momento, deixando tio Mauro à deriva, o povo todo atirando-se à água, em busca dele.

- Tio Mauro sempre foi liso que nem sabonete.

O barco desapareceu no horizonte e não deram conta de o alcançar. Mas, dias depois, a enchente finda, encontraram o bólido estacionado debaixo da árvore onde tio Mauro certa vez intencionara pedir Ruth em casamento - isto não ocorrera, ele acabou por executar o ato em frente ao açougue de seu Manuel, tamanha ansiedade que o tomava por inteiro. De qualquer forma, enterram tio Mauro embaixo da tal árvore, um ipê de flores amarelas, e tia Ruth logo avisou que, ao morrer, desejava que a enterrassem no mesmo local.

Mas, que interessa? Vamos a João Botelho, o grande jogador de dominó, segundo contam, parecia reconhecer as pintas nas pedras, sem que precisasse realmente visualizá-las, tratava-se praticamente de um místico do jogo, se imaginava um dobro de sena, obviamente haveria de serem doze as inscrições na parte oculta da pedra em questão; no entanto, dizia, tal poder nunca funcionava se houvesse dinheiro envolvido na brincadeira, sua clarividência apenas funcionava em jogos amistosos sem concorrência monetária - isto nunca se comprovara, até então, porque não houve vez em que João Botelho tenha jogado a dinheiro, o que o obrigava, desta maneira, a sobreviver de um outro ofício, no caso, o de alfaiate, o que não lhe trazia fortunas, porém possibilitava alimentação e moradia para ele e a mulher.

Certa feita ganhou na loteria, comprou uma bela casa, a mulher raiava de felicidade, João Botelho nunca presenciara tamanha alegria no semblante e trejeitos da esposa. Todavia, logo o resultado da loteria mostrou-se um engodo, um mal entendido, já que o autêntico vencedor fora um rico da região, seu Venceslau, que, penalizando-se de João Botelho, acabou por lhe comprar e doar a referida casa. Sendo assim, mesmo sem o dinheiro da contenda, a mulher continuou feliz e, por isso, também João Botelho, a cada sorriso da esposa, ele sentia um prazer enorme, e acabava por querer lhe fazer tudo, lhe escovava os cabelos, trazia frutas e flores, lavava a louça, pintava dela as unhas, preparava surpresas e não dormia à noite, fazendo-lhe todas as carícias, mesmo que viesse a acordar cedo no dia seguinte para enfrentar a labuta.

É quando uma invasão de formigas se instaura na casa, a mulher e João Botelho a travarem longas batalhas contra as pequeninas. Por um tempo as mantiveram sobre controle, porém, as formigas, as formigas, com elas ninguém pode, inverteram o jogo e dominaram todo o território, constatou um João exausto; e se fosse apenas isso... também logo a pintura da casa passou a escurecer, descascar, o piso perdeu o brilho de outrora, torneiras pingavam, portas rangiam, ainda que João Botelho se propusesse a reparos, mas nada pode contra o tempo e a falta de recursos.

(Talvez se pergunte se João Botelho não tivera filhos que poderiam tê-lo ajudado. Sim, trata-se de uma consideração que se revela verdadeira, estão em registros dois filhos de João Botelho com a mulher: um padre a trabalhar em terras distantes, considerado um santo, o que, provavelmente está mais relacionado com as histórias contadas por João Botelho do que com santidade propriamente dita, visto que João Botelho, notando a feição silenciosa, quase estóica, do menino, e uma mancha na testa deste, vivia espalhando pela cidade boatos sobre modestos feitos miraculosos do filho; e também uma moça que ninguém nunca soube exatamente o motivo, tinha fama de ser marginal, procurada até pela polícia, talvez por falar demais, quem garante? Fato é que nenhum dos dois estava presente para ajudar João Botelho a derrotar as formigas.)

Havia também Márcio Botelho, irmão de João Botelho. Este havia feito dinheiro no oeste, tratava-se de um desses aventureiros repletos de histórias heróicas, do gênero que vive às custas de apostas e/ ou de mulheres; trambiques e achaques, mas mui respeitosamente, afinal, tratava-se de um homem essencialmente bom. Vinha fugido de longe, acusado de fraude e acesso a informações privilegiadas. Chegara na região há pouco mais de dois meses, o bolso repleto de dinheiros. Gostava de comer azeitonas, tomar champanhe e fugia quando o assunto era banho, porque dizia, o perfume francês já dava conta do futum.

Houve, obviamente, uma jogatina na qual participaram ambos irmãos, o místico e o pirata, não é preciso informar quem venceu, a mulher de João Botelho o deixou, ele pensou em morrer, escreveu um pequeno texto onde se imaginava como um personagem do caderno policial do periódico da região, a gravata e o fim, daí para diante escreveu também cinco tomos nos quais narrou a história de oito gerações de andorinhas em viagem ao mundo em busca do verão perfeito. Também aproveitou para, foice em punho, expulsar o irmão da cidade, porque este já havia rapelado quase toda a população do local. Continua o trabalho como alfaiate. Misteriosamente, as formigas desapareceram.


Sr. G. diz:


As quatro ou cinco mortes de João Botelho: João Botelho tentou se matar, ainda criança, pulando no rio de sua cidade, e não teve sucesso. Daí em diante foi ribanceira abaixo: cresceu e se transformou num cara legal, trabalhador e desenhista. Um dia enfiou seu lápis na garganta e desabou, abatido, o rosto sobre o papel em sua mesa: o sucesso que tanto sonhava: exposições com sua aquarela e a alcunha de prodígio das artes metalinguísticas. Numa destas galerias, enquanto bebericava seu champagne, conheceria sua terceira namorada, a quem apelidaria, não sem carinho, de Nut. Com Nut teria a oportunidade de conhecer a paixão desenfreada, a dor da traição, uma boa dose de chumbinho e, talvez, Paola, que lhe encontraria perdido numa noite de lamentos e exortações. Paola roubaria sua carteira e racharia seu crânio com o salto de sua tamanca gasta. Agonizando na calçada, João Botelho não teria a oportunidade de conhecer sua verdadeira e autêntica morte ao sair cambaleante do velório de sua segunda mulher, atravessar a rua e ser atingido por um caminhão desgovernado.